quinta-feira, 17 de junho de 2010

Alessandro Atanes
Publiquei em em março de 2007 no PortoGente um artigo sobre os contos policiais de King Shelter. Agora que estão abertas as comemorações do centenário de Patrícia Galvão, volto a publicá-lo na Revista Pausa. O motivo? Leia abaixo:


Um conto policial da década de 40 assinado por King Shelter reúne no mesmo espaço narrativo formado por uma viagem entre dois portos duas matrizes narrativas típicas do século passado: a resolução de crimes e a história de amor com o par romântico formado por casal rica-pobre/rico-pobre.

É O mistério do navio perdido, publicado originalmente na revista Detetive, pulp fiction de origem nacional, isto é, ficção em papel barato, de polpa da madeira, cujos exemplos ainda estão nas bancas que vendem as histórias de Sabrina ou outros nomes de mulher e as histórias de cowboys e vaqueiros do velho oeste.

A citação do primeiro parágrafo é necessária para a apresentação das tramas relacionadas pelo enredo:

Todos os passageiros que estavam na sala de festas no navio ouviram o grito de angústia e terror que vinha do tombadilho. Quase todos, a um tempo, se precipitaram naquela direção. Estendida numa cadeira de lona, a cabeça quase que mergulhada no colo, coberta de sangue, estava uma mulher morta. Um objeto qualquer muito pesado ou manejado com muita força tinha lhe esfarelado o crânio. Contudo, o objeto usado pelo assassino (pois só um homem seria capaz de tal proeza) não fora encontrado.

I
A mulher morta é a srta. Blade. A resolução de seu assassinato está nas mãos do detetive particular Hope Hone, que viajava sob o disfarce de Roberts Own, um proprietário irlandês, para caçar o ladrão internacional Viollet, que deixava a Europa depois de ter resolvido “transportar o seu campo de ação para outro lado do mundo”. Viollet saíra do porto de Liverpool, Inglaterra, embarcado no transatlântico Vampire (nome adequado a uma história de mistério) e em posse das jóias de lorde Tornhill. A missão de Hope Hone era encontrá-lo antes do desembarque no porto de Nova York, nos Estados Unidos. O assassinato da srta Blade detona o enredo de tramas intercaladas.

A história ocorre durante a Segunda Guerra Mundial e, para evitar ataque de submarinos, o capitão do navio determina à tripulação traçar uma rota mais longa, porém mais segura. Devido a esta medida, a vítima seria sepultada no mar, já que para o transatlântico “era impossível atingir qualquer porto naquelas circunstâncias”. Por necessidade de camuflagem apenas as luzes de emergência e orientação eram acesas com o anoitecer:

Intenso nevoeiro envolvia o Vampire que cortava com extrema cautela as águas. Contudo não fazia muito frio. Ao contrário. A atmosfera parecia conter uma transcendência morna, o navio emitia estalidos sinistros, e navegava às escuras no mar atormentado pela guerra. Apenas as lâmpadas internas estavam acesas/, assim mesmo diminuídas, deixando passar através dos vidros enfumados das vigias uma tênue e fantasmal reverberação azulada que a própria neblina disfarçava. A que altura estaria o Vampire? Ninguém saberia dizer, ninguém tinha como certa a informação oficial que o capitão Chardin mandar fixar no quadro-negro. Para evitar o pânico, o jornal de bordo fora suspenso apesar das reclamações dos passageiros ávidos por notícias. Essas passavam algumas vezes de ouvido a ouvido, às vezes reais, às vezes deturpadas.

A impossibilidade de se atingir qualquer outro porto e a cena do nevoeiro provocam o clima de suspense – a imagem é bem de um filme noir – em que se movem os personagens; e também pactuam com o leitor do conto que o sucesso das investigações (o assassinato e o roubo das jóias) depende destas serem concluídas até a chegada a Nova York, prevista para dali a 24 horas, talvez 36.

II
Já a história do par romântico tem como protagonistas o irmão da srta Blade, Maurice, recém saído do “aristocrático” Saint-Cyr, e Germaine, passageira da terceira classe. Ele viajava a passeio “antes de se integrar na vida militar”; para ela, Nova York era uma escala até Nova Orleans, onde seu pai, que havia emigrado para lá anos antes, a esperava.

Os obstáculos interclassistas de Maurice Blade e Germaine estão em segundo plano. Assim como em Titanic, mas escrito cerca de 50 anos antes, o conflito de classes é menos importante para a provação do casal que o desastre – o impacto com um iceberg num caso e, no outro, o assassinato da irmã de um dos componentes do par, que deixou Maurice sem qualquer parente com vida. Na trama romântica, o assassinato não é o objeto da narrativa, sua função narrativa é aproximar o casal. Tanto que Germaine – moça de terceira classe (financeiramente falando) acostumada com as investidas dos rapazes da primeira (também apenas financeiramente) – só acredita na promessa de casamento de Maurice quando ele a mantém mesmo após a notícia da morte da irmã.

III
Não há como ter certeza sobre as intenções do autor, mas o narrador parece se divertir e nos divertir ao relatar uma cena em que as duas tramas – a policial e a amorosa – se misturam, levando o detetive a um revés na investigação: o local em que Hope Hone seguia uma pista dos criminosos era o mesmo em que o par romântico havia combinado para o encontro que definiria o futuro do casal, a plataforma dos botes salva-vidas, onde os ladrões haviam escondido o fruto de um crime oportunista, as jóias que a srta Blade usava quando fora atingida no tombadilho.

Ao perceber uma presença feminina no deck, o detetive salta de um dos botes e surpreende Germaine; com a chegada de Maurice, ele se dá conta da confusão (“Hope Hone verificou claramente que tinha sido logrado mais uma vez”).

A cena apresenta um obstáculo a mais na corrida do detetive contra o tempo, mas o que só ela mostra é o que pode ocorrer quando tramas de gêneros diferentes se encontram no mesmo espaço narrativo.

Se brincarmos de Umberto Eco, a cena pode ser caracterizada como uma autoironia literária, em que o narrador comenta o próprio ofício de escrever, mecanismo que mais tarde seria classificado como um dos elementos definidores da literatura pós-moderna, ao lado da fragmentação da narrativa e da influência da e na cultura popular (o próprio Eco lembra que esses elementos podem ser encontrados por toda a história da literatura, sendo que a configuração deles a partir da segunda metade do século XX daria na explosão da pensamento pós-moderno nos anos 60 e 70).

IV
King Shelter surge para os leitores brasileiros no número 196 da revista Detetive com o conto A esmeralda azul do gato do Tibet, publicado em junho de 1944. Até dezembro do mesmo ano o autor escreveria para a revista, que era dirigida por Nelson Rodrigues. O conto aqui analisado está na coletânea Safra Macabra: contos policiais.

Esses sete meses formam todo o período de existência do autor, que nada mais era do que um dos muitos pseudônimos usados por Patrícia Galvão – o mais famoso deles, Pagu, acabou até sendo mais conhecido que o nome próprio da intelectual, escritora e militante, principalmente quando ela é tomada e reduzida a ícone feminista ou musa do modernismo. Patrícia Galvão (1910-1962) utilizava também os pseudônimos de Zazá, Pat, Pt, Patsy, Mara Lobo, Solange Sohl, Ariel, Gim, Léonie, entre outros, na lista que o crítico Geraldo Galvão Ferraz – filho de Patrícia – traça na apresentação dos contos de Safra Macabra.

King Shelter era publicado ao lado de nomes consagrados das histórias de crime e mistério como Sax Pohmer (criador do Fu Manchu), Maxwell Grant (O Sombra), H.G. Wells (Guerra dos mundos), além de G.K. Chesterton, Dashiel Hammett, Agatha Christie e Edgar Alan Poe, o criador do gênero. Essa convivência talvez tenha feito com que Patrícia Galvão ambientasse suas histórias na Inglaterra e na França com o objetivo de que os leitores brasileiros de histórias policiais, acostumados às convenções do gênero (como o nevoeiro e o crime na alta sociedade), não estranhassem a presença de elementos nacionais que poderiam tirar-lhes o foco da resolução da história – mas isso é só hipótese.

A imagem talvez seja forçada, mas acredito que vale pelo teor geral aqui do PortoGente: os contos de Safra Macabra, e até mesmo algumas considerações da introdução – nos levam a pensar que Patrícia Galvão escrevia histórias de crimes como um porto-indústria faz com seus produtos: importa seus elementos criados fora do país e os monta em território nacional. Outros elementos reforçam a caracterização da atividade intelectual de Patrícia Galvão como a de importadora de literatura.

Epílogo – a importadora de literatura
O termo – e em última instância, todo este texto – nasceu das conversas com Márcia Rodrigues da Costa, minha companheira, que fez sua dissertação de mestrado sobre o período em que a escritora trabalhou no jornal diário A Tribuna, em Santos, fazendo jornalismo cultural. As informações abaixo são de indicações ou leituras feitas por Márcia; já as besteiras, são minhas mesmo.

O papel de Patrícia Galvão no intercâmbio político e cultural entre o Brasil e a Europa, sobretudo a França, ia muito além da importação do gênero policial. De sua temporada na França, em 1934, devemos a tradução do primeiro trecho de Ulysses (1922), a primeira tradução do romance do irlandês James Joyce para o português, apesar de ter sido feita a partir da versão francesa – o que não é pecado algum: até pouco tempo atrás líamos o russo Dostoievski a partir das traduções para o francês.

Sua atuação como importadora e literatura continua produtiva em seus anos finais de vida, entre 1954 e 1962, ano de sua morte, quando escrevia para as seções de literatura, TV e cultura de A Tribuna. Lá, ela divulga a obra de autores como Fernando Pessoa (ainda pouco conhecido no País naquela década); traduz em 1954 A cantora careca, de Ionesco; em 1959 dirige, ao lado de Paulo Lara, Fando e Lis, de Fernando Arrabal; e, em 1960, traduz e dirige A filha de Rappaccini, do mexicano Octavio Paz.

Suas viagens como jornalista e ativista política fizeram com que mantivesse contato com uma série de figuras dos meios literário e intelectual da América do Sul e Europa. Em 1928, conhece Jorge Luis Borges e Victoria Ocampo em Buenos Aires. Em 1940, na carta-testamento que escreveria ao marido Geraldo Ferraz, ela lembraria do momento em que travou contato com a vanguarda literária Argentina e a compara com a vanguarda nacional:

Dois dias depois, já estava em contato com o grupo intelectual de vanguarda. Pouca gente, pois a estação já começava em Mar del Plata. Mallea, um dos elementos de maior destaque, que me tinha sido apresentado por Alfonso Reyes, logo que recebeu meu telefonema, procurou-me para introduzir-me no círculo da revista Sur [uma das mais importantes revistas culturais da América Latina], que acabava de se formar.
Aquelas assembléias literárias, como eram enfadonhas. O ambiente idêntico ao que conhecia cercando os intelectuais modernistas do Brasil. As mesmas polemicazinhas chochas, a mesma imposição da Inteligência, as mesmas comédias sexuais, o mesmo prefácio exibicionista para tudo.

Uma década depois, em suas viagens como repórter dos cariocas Diário de Notícias e Correio da Manhã e do paulistano Diário da Noite, ela viaja pela Califórnia, nos Estados Unidos, Japão, China, União Soviética, Polônia, Alemanha e França e mantém encontros com nomes como Raul Bopp, Sigmund Freud e Pu-Yi, o último imperador chinês, de quem recebe sementes de soja que mais tarde dariam início à cultura no Brasil (e, posteriormente, muitas toneladas de grãos à balança comercial do porto de Santos). No período em Paris, trabalha no jornal La Avant-Garde e traduz filmes.

Mais tarde, em 1960, iria ainda se encontrar no Brasil com Ionesco – que havia traduzido em 1954 – e Jean Paul Sartre. Símbolo de seu cosmopolitismo é o último texto, um poema cujo título é escrito em inglês, Nothing, publicado em A Tribuna em 1962.

Referências:
Patrícia Galvão (Pagu) como King Shelter. Safra Macabra: contos policiais. Introdução de Geraldo Galvão Ferraz. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

Patrícia Galvão. Paixão Pagu: uma autobiografia precoce de Patrícia Galvão. Organização de Geraldo Galvão Ferraz. Rio de Janeiro: Agir, 2005.



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