sexta-feira, 4 de abril de 2014



Máquinas lúcidas

Por Marcelo Ariel

“Ela”, de Spike Jonze, é um ensaio sobre a solidão e sobre a imanência, como em “Blade Runner”, de Ridley Scott, aqui existe uma projeção de uma humanidade profunda em uma máquina, mas o que importa mesmo no filme é sua proximidade com nossa vida cotidiana, proximidade de milímetros. 

O filme de Spike Jonze cria uma nova vertente, a dos filmes que tem como protagonistas um ator em estado de invisibilidade ou a não-presença de um dos atores em cena utilizada como presença. Não se trata de uma animação onde isto acontece de um modo figurado há décadas. A voz do programa: as vozes de Scarlett Johansson, Brian Cox, Bill Hader, Spike Jonze e Kristen Wiig no filme simulam a presença  do humano dentro do programa de computador que por sua vez simula para si mesmo uma humanidade que acaba por si.
Se descontarmos o final new age do filme, provocar um choque no sistema da máquina e pane no programa que leva as personagens humanas do filme representadas pelos atores Joaquin Phoenix e Amy Adams a um reencontro com o grande vazio da solidão, único lugar onde o outro pode ser tocado sem simulações. O que nos leva ao chamado “mundo real”, uma das grandes e mais patéticas invenções da mente humana.

           

Quase sem dedos – Her

Por Aline Rocha

Quase sem dedos, Theodore percorre seus dias e constrói suas relações. Quase sem dedos: as cartas manuscritas, paradoxalmente, já não precisam das mãos; as funções do dia a dia são regidas pela voz, o toque já não é mais necessário para que haja o amor. Her é um filme que problematiza o toque.

Em mais da metade das cenas, é o rosto de Theodore que ocupa toda a tela (semelhante a outro filme sobre amor, corpo e limitações, La vie d’Adèle). São suas expressões faciais que delineiam o ritmo da trama e as emoções do espectador, como se a materialidade de sua face precisasse ser reiterada a todo momento. Ao mesmo tempo, a voz de Samantha põe em xeque essa materialidade, já que ela mesma, em sua ausência, também é material. E isso apenas por conta das transformações que provoca na vida de Theodore. (Não seria exatamente isso o cinema? A literatura? Um imaterial que só existe na medida em que modifica e desloca uma outra vida, de outro ser. Talvez a arte possa ser entendida por esse viés, assim como a existência).

Ao final, quando Theodore e Amy sobem ao topo do edifício, já desamparados por sucessivas perdas, o filme no ápice das desilusões; o espectador, preparado para um possível duplo suicídio, é surpreendido com a cabeça de Amy deslizando sobre o ombro de Theodore. Mais uma vez o toque, o encontro dos corpos como uma possível saída diante da imensidão do céu nublado de Los Angeles.

“Como se divide uma vida com alguém?”, pergunta Samantha a Theodore. E talvez a própria pergunta, a tentativa do “saber por quê”, seja a resposta.

Quando saí da sala de cinema, parei por alguns instantes em um bar em frente à Estação Botafogo. Todos levavam um celular nas mãos, quase sem dedos para o copo, para a pessoa adiante, para o cigarro queimando. Todos levavam um celular, exceto um senhor sentado às minhas costas, que dizia, tentando estabelecer qualquer tipo de conexão com os passantes entretidos em fones de ouvido: “78 anos, 4 mulheres e 3 filhos. Mais mal-criado que carne de cobra.” E repetia: “78 anos, 4 mulheres e 3 filhos”, sintetizando sua vida.


  

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