quinta-feira, 23 de outubro de 2014



Por Ademir Demarchi

A casa de papel, de Carlos María Dominguez


            Desde que foi publicado, o pequeno livro A casa de papel, escrito pelo argentino Carlos María Domínguez, tem cativado inúmeros leitores mundo afora. No Brasil esse livro foi publicado pela primeira vez pela Editora Francis, criada pela jornalista Sônia Nolasco, viúva do jornalista Paulo Francis, para publicar seus livros.

Paulo Francis era um notável devorador de livros e constituiu uma espécie de casa de papel com eles em Nova York, como correspondente de jornais brasileiros, que enchia regularmente com provocações e comentários sobre cinema, teatro, música e livros, muitos livros, até morrer de enfarto após a tensão gerada por denúncias de corrupção na Petrobras e um processo que recebeu dela, que tirou seu sono e, dizem, a vida. A Editora Francis publicou sua obra e muitos livros interessantes mas teve vida efêmera e, desaparecendo, com ela se foi também A casa de papel, que, depois de duas edições, virou uma raridade vendida a preços exorbitantes em sebos, essas outras casas montadas tijolo a tijolo de papel.

A boa notícia é que o livro de Domínguez está sendo reeditado pela Realejo Livros, uma pequena e ousada editora de Santos, que é também uma rara e simpática livraria de rua, dessas que já não existem mais no Brasil. Sem a ostentação dessas casas de vitrine em que se tornaram as livrarias de shopping, essas desencantadas, a Realejo, com mesas na calçada e apresentação animada de chorinho todas as sextas-feiras é uma agradável casa de papel de onde saem livros tão peculiares e raros pela qualidade quanto Realidade Re-vista, livro com as melhores reportagens da revista Realidade, organizado por dois dos melhores jornalistas que este país já teve, José Hamilton Ribeiro e José Carlos Marão; ou livros sobre futebol, destacando-se dois sobre a vida de Pelé; ou Os anos do furacão, do londrinense Mário Bortolotto, entre tantos outros. A livraria e editora se desdobrou há alguns anos no evento Tarrafa Literária, que traz escritores para conversas agradáveis e lançamentos de livros.

Pois o circunspecto Carlos María Domínguez veio a Santos lançar a nova edição, a terceira brasileira, do seu A casa de papel, que já foi traduzido em mais de 20 línguas e vendeu mais de 150 mil exemplares. E isso acontece porque se trata de um pequeno livro, tanto no formato quanto nas suas 96 páginas, mas que é imensamente maior por imaginoso que é ao tratar dos livros como objetos de ficção. Um trecho dele, já no segundo parágrafo, fisga o leitor como um peixe glutão, tal qual aquele de O velho e o mar, narrado por Hemingway, um peixe forte que arrasta o pescador teimoso a esmo pelo mar, horas a fio mas tudo dentro de um livro...

Com o livro de Domínguez não adianta espernear como o peixe, pois o narrador dá linha e o leitor não escapa: “Os livros mudam o destino das pessoas. Uns leram O tigre da Malásia e se transformaram em professores de literatura em remotas universidades. Sidarta levou milhares de jovens ao hinduísmo, Hemingway transformou-os em esportistas, Dumas transtornou a vida de milhares de mulheres e não poucas foram salvas do suicídio por manuais de cozinha. Bluma foi sua vítima”.

Bluma é a personagem de quem passamos a querer saber a vida, o que aconteceu, o que os livros fizeram dela e como se relaciona com uma casa de papel, que usa livros em lugar de tijolos. Tendo vivido em Londres envolta com livros, ao sair de uma livraria compenetrada na leitura dos Poemas de Emily Dickinson enquanto caminhava distraída pelas ruas do Soho, morre atropelada. É enigmática, portanto, a frase “Os livros mudam o destino das pessoas”. No caso dela, perdeu a vida e no caso do velho professor de línguas antigas, Leonard Wood, se não perdeu a vida, mudou-a para pior, pois os cinco tomos da Enciclopédia Britânica que despencaram da estante o tornaram hemiplégico... No entanto não é só de desgraças que se faz A casa de papel. O narrador, ao receber um exemplar de A linha de sombra, de Conrad, sujo de cimento, vai de Londres até a praia de La Paloma, no Uruguai, para desvendar o que se passou. Durante sua viagem de um lugar a outro até o desvendamento do que se passou com Bluma o leitor se encontra com escritores, livros e paisagens.

Assim, o menor perigo que corre quem leia A casa de papel é, primeiro, a vontade de ir atrás de outros livros como esse e, em segundo, escreve-los... Já os destinos que decorrem desses são inimagináveis...

A nova edição foi traduzida e posfaciada por Joca Reiners Terron, com ilustrações de Helena Campos, projeto gráfico do Estúdio Canarinho e edição de José Tahan e Celso de Campos Jr.


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