segunda-feira, 20 de outubro de 2014



Retrato de Família, óleo por Maerten Van Heemskerck 

Por Marco Aurélio Cremasco


Olho para uma fotografia. Ela tem quase 50 anos e captura o instantâneo de uma família. Gente simples. Avós, tios, tias, primos, primas, pais e irmãos. Deixo de resolver um sistema de equações diferenciais para mergulhar na memória. Sou o menor entre os retratados, o caçula. Uma das mãos levada à boca e a outra protegida pelo meu avô. Não é difícil perceber a face talhada por sulcos por onde escorreram o suor de um plantador de café, de um cultivador de sonhos. Já o semblante da minha avó revela o traço forte de quem não renega um braço de enxada. Tenho a cabeça levemente pendida para a direita e, para o meu espanto, a maioria dos primos, uns vinte, têm a cabeça na mesma posição. Coisa de DNA que não me atrevo a explicar. Vejo minha irmã com o coque das primas. Noto que o seu sorriso em nada modificou. O tempo é incapaz de destruir sorrisos. O tempo nos impõe máscaras de idades, mas ajoelha-se quando encontra a felicidade. Dezenas de olhares desfilam diante do meu olhar. Procuro detalhes, revolvo lembranças e encontro matizes do cinza. Qual seria a cor do desejo de cada uma daquelas pessoas? O que aconteceu, na vida de cada uma, um dia depois de aquela fotografia ter sido revelada? E o cinza da foto abarca todas as cores e tudo, súbito, torna-se branco, apenas a cor morena de minha mãe destoa da tez clara da italianada, como fosse a lua a eclipsar o dia mais ensolarado de meus dias. A visão embaça. Tomo a fotografia e a trago para mais perto. Uma gota de chuva, vinda de não sei onde, explode na face daquele guri de quatro anos, gravado no centro da velha foto. Estou só. A fotografia avoluma-se e me traga. A minha mãe está ao lado de minhas tias e atrás delas, os maridos de todas elas. Exceto a minha mãe, todos se foram. Como se foram alguns primos e os meus avós. Como também partiu o tio Arlindo, cuja sedução – diziam as boas línguas – era de tirar o ar do nome. Estou só e de tão só percebo-me em um poço sem fundo. Essa sensação me faz tatear a solidão e ouço: você não está e nunca esteve só. A terra vermelha, as plantações de café, de algodão, de soja, de amendoim, não são as mesmas, como não é o mesmo o corte seco do enxadão. Veio o asfalto e atapetou o chão, encobrindo as pegadas mais profundas daqueles que romperam matas para desbravar sertões, deixando órfãos centenas de anônimos… feito nós, aqui, nesta fotografia. Todavia, ainda que incógnitos, levantamos. Espalmamos a poeira do tempo e acompanhamos a sua jornada a cada volta dos ponteiros do relógio da sua vida. E onde esses ponteiros emperravam, lá estávamos, empurrando-os, pois todo segundo vivido é uma graça alcançada. Compartilhamos a sua dor e sopramos – feito a brisa que vem do Tibagi – o alento da esperança. Sorrio. Deixo a fotografia no seu devido lugar: em uma estante de livros, na minha sala de trabalho. Basta levantar um pouco os olhos. Fantasmas passeiam por aquela imagem e dão significado à existência. Dizem-me se eu existo, carne, osso e espírito, é devido a tantos outros, principalmente aos que não estão mais conosco, mas permanecem eternizados na alma ou em um simples olhar depositado sobre uma velha fotografia.

1 comentários:

  1. Olho para uma fotografia. Ela tem quase 50 anos e captura o instantâneo de uma família. Gente simples. Avós, tios, tias, primos, primas, pais e irmãos. Deixo de resolver um sistema de equações diferenciais para mergulhar na memória. Sou o menor entre os retratados, o caçula. Uma das mãos levada à boca e a outra protegida pelo meu avô. Não é difícil perceber a face talhada por sulcos por onde escorreram o suor de um plantador de café, de um cultivador de sonhos. Já o semblante da minha avó revela o traço forte de quem não renega um braço de enxada. Tenho a cabeça levemente pendida para a direita e, para o meu espanto, a maioria dos primos, uns vinte, têm a cabeça na mesma posição. Coisa de DNA que não me atrevo a explicar. Vejo minha irmã com o coque das primas. Noto que o seu sorriso em nada modificou. O tempo é incapaz de destruir sorrisos. O tempo nos impõe máscaras de idades, mas ajoelha-se quando encontra a felicidade. Dezenas de olhares desfilam diante do meu olhar. Procuro detalhes, revolvo lembranças e encontro matizes do cinza. Qual seria a cor do desejo de cada uma daquelas pessoas? O que aconteceu, na vida de cada uma, um dia depois de aquela fotografia ter sido revelada? E o cinza da foto abarca todas as cores e tudo, súbito, torna-se branco, apenas a cor morena de minha mãe destoa da tez clara da italianada, como fosse a lua a eclipsar o dia mais ensolarado de meus dias. A visão embaça. Tomo a fotografia e a trago para mais perto. Uma gota de chuva, vinda de não sei onde, explode na face daquele guri de quatro anos, gravado no centro da velha foto. Estou só. A fotografia avoluma-se e me traga. A minha mãe está ao lado de minhas tias e atrás delas, os maridos de todas elas. Exceto a minha mãe, todos se foram. Como se foram alguns primos e os meus avós. Como também partiu o tio Arlindo, cuja sedução – diziam as boas línguas – era de tirar o ar do nome. Estou só e de tão só percebo-me em um poço sem fundo. Essa sensação me faz tatear a solidão e ouço: você não está e nunca esteve só. A terra vermelha, as plantações de café, de algodão, de soja, de amendoim, não são as mesmas, como não é o mesmo o corte seco do enxadão. Veio o asfalto e atapetou o chão, encobrindo as pegadas mais profundas daqueles que romperam matas para desbravar sertões, deixando órfãos centenas de anônimos… feito nós, aqui, nesta fotografia. Todavia, ainda que incógnitos, levantamos. Espalmamos a poeira do tempo e acompanhamos a sua jornada a cada volta dos ponteiros do relógio da sua vida. E onde esses ponteiros emperravam, lá estávamos, empurrando-os, pois todo segundo vivido é uma graça alcançada. Compartilhamos a sua dor e sopramos – feito a brisa que vem do Tibagi – o alento da esperança. Sorrio. Deixo a fotografia no seu devido lugar: em uma estante de livros, na minha sala de trabalho. Basta levantar um pouco os olhos. Fantasmas passeiam por aquela imagem e dão significado à existência. Dizem-me se eu existo, carne, osso e espírito, é devido a tantos outros, principalmente aos que não estão mais conosco, mas permanecem eternizados na alma ou em um simples olhar depositado sobre uma velha fotografia.

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