segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Por Marcelo Rayel

Fotografia: Bruno Shultze


“(...) É uma hecceidade, que não é mais de individuação, mas sim de singularizção: vida de pura imanência, neutra, além do bem e do mal, ja que só o sujeito que o encarnava no meio das coisas a tornava boa ou má. A vida de tal individualidade se apaga em benefício da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome, embora não se confunda com nenhum outro. Essência singular, uma vida... (...)” 

[DELEUZE, Gilles. “Imanência: uma vida...” In: VASCONCELLOS, J. e FRAGOSO, Emanuel (orgs.). Gilles Deleuze: imagens de um filósofo da imanência. Londrina: EdUEL, 1997b, p. 17-18]


As perdas, assim como os traumas, não surgem para serem superadas.
Sua superfície de convergência é o repentino. Tanto o trauma quanto a perda sempre apresentarão seu traço de inesperado. E dentro dessa mecânica bem próxima da diabólica, não se estabelecem em qualquer caminho como fato a ser superado.

A perda e o trauma se estabelecem para serem acomodados.

A harmonização, tanto daquilo ou daquele que já não mais existe em conformação física quanto de tudo aquilo que nos é enfiado goela abaixo, é o cerne da Arte. Da primeira Arte: o convívio, os sabores, os ventos, as esguias palmeiras onde a praia faz sua ponta, os amigos, uma vontade imensa de materializar no mundo o que está diante dele.

Nenhum cerne da Primeira Arte, que alguns arriscam a chamar de Amor, sobrevive sem a harmornização das perdas e do trauma, torná-los neutros em força, ou poder, de interferência, para o que está diante do mundo se materialize dentro dele.

Posterior a essa acomodação, vem a Segunda Arte. A Grande Arte. Uma Arte de giro alto, talvez destinado a bem poucos, mas que imortaliza o que, até então, estava fora. É quando, porventura, encontramos traços de sacralidade que não respeitariam qualquer física-de-interesses e serão inegociáveis em termos de qualquer acordo rasteiro, tanto com os homens quanto com o tempo. A imanência: a Grande Arte, intransitiva.

A Arte pela Arte, a Arte nela mesma, sem dedos sujos e ranhuras causadas por unhas débeis de uma insaciabilidade em tornar eterno apenas o que era ego. A Grande Arte, no seu estado mais profundo, em seu alicerce quase invisível, não se estabelecerá em favor de alguém, nem para glórias de nomes ou reputação de quem a criou: a Grande Arte será inegociável. Jamais será pessoal: intransitiva, posto que é patrimônio a partir de matéria, reconstituída por esse ente intangível, o sentimental da plateia, e assim permanecerá distante de qualquer autoria. A imanência: a Grande Arte, um pertencimento da alma.

O que fez a Literatura evoluir para o Cinema, e o Cinema chamar para si o som: sua música. O normal entusiasmo da confluência dos vetores: a força que ora influencia, ora é influenciada. A alegria que essa possibilidade gera: uma invaginação quase feérica, inominável, indescritível, onde frequentemente caímos na bobagem de tentar identificá-la como loucura. A ignição daquele jovem compositor: tudo está conectado a tudo, ao mesmo tempo.

Esse artista veio: engolfou, estava nele. A sanha de tornar no mundo o que estava diante do próprio mundo. Transferir pelas moléculas de oxigênio entre as cordas de um piano e os tímpanos de um combalido transeunte a possibilidade de uma imagem. A representação como um contato de uma voz que nos chama, mas corriqueiramente a ignoramos. O moço de uma cidade-oceano, onde se cheira ferrugem, úmida e de apetite-trade onde a Arte é desapercebida. Pouco importava: o som da sua cabeça viria em tantas cores que esse mesmo lugar não tardaria em vê-las desfraldadas no céu. Não se intimidou: enfronhado nesses livros, nessas fotografias de quadros rápidos, em ocupações de caixas-cênicas, tornou carne aquilo que ardia dentro de si.

Em algum ponto do ano 2000, estive diante desse rosto. Já era o velho Giba. Erguido feito troféu nos braços da Bélgica e da Alemanha, serviu-me Henrique Oswald. E daquele ponto em diante, absorto, à época, em livros de ofício, instalou-se uma broca cuja maldita lavra era me perfurar por dentro. Aquele senhor, do autógrafo no encarte, me envelheceu. Filho da mãe, pensei. Como é que eu volto para casa, agora?! Teatro Municipal, caixa-de-concreto com luzes confortáveis, aquela noite foi um divisor-de-águas: a ilha-presídio vivia o epílogo do seu último surto de efervescência. A cidade, tempos mais tarde, se esmeraria no seu mais atraente produto de exportação: o açodamento da cretinização.

O velho Giba veio ao mundo na Polinésia Francesa desses mares do Atlântico para testemunharmos seu ocaso nesse reino-encantado-de-meia-dúzia. Um movimento notável de pior a péssimo. Agora, sem ele. A ilha-presídio não está velha: está rançosa, onde jovens e mais jovens se aglutinam embaixo de marquises nos dias de chuva, no pavor das crônicas fantasmagóricas do Fuga de Nova York que já escolheu, um dia, Quintino de Lacerda. Uma incredulidade quanto ao chão de Pagu, onde pessoas eram devoradas vivas, um lugar quase hepático, cuja criação tinha o compasso de uma fúria, e o sumiço do velho-maestro soa como o desaparecimento do último bastião que mantinha tal lugar viril, sem viagra.

O velho Giba saiu do solo. Sempre fora assim. O homem era com e para os seus, a ignição, a boa e preservada ignição: um motor de explosão, certa pressão e temperatura, desde os anos 40. O velho, esse, já maestro, saiu do solo, como sempre fez. E deixa para trás o mundo-mercado da agressão, esses atentados contra a boa-fé, bem pequenos, quase invisíveis, os quais jamais fez campanha. O artista que não ergueu castelos sobre o físico, mas sobre o que via dele. Intuição, como toda boa Arte, na companhia de todos, sempre em colóquio, sempre junto. Difícil como um escorpiano e fácil nas constantes alianças com os jovens, de gente que sequer era nascida no início dos anos 60. Intransponível como bom escorpiano, mas de uma generosidade próxima do surreal sempre que era possível.

A possibilidade: sua marca, a marca da grande Arte. Seria impensável em seu mundo qualquer pedra-de-tropeço entre ela e o real. A ebulição de qualquer grande pensador ou artista: as possíveis artimanhas do que está diante do mundo se materializar dentro dele. Há essa possibilidade: o que antes era somente força, poder, também estará disponível como saber. Luz e som, visibilidade e audição, ver e falar: no caso dele, ver e ouvir.

A preservação do vetor de força: não nasceu jovem para morrer velho. Nasceu jovem e morreu jovem, apenas com um pouco mais de bagagem que nem todos têm a sapiência de acumular. Diferente de nós, reles mortais, que nascemos até sabidos, mas nos esmeramos com força para estarmos completamente cretinos no último dia. E se essa é nossa inversão de força, a involução, ele provou possível a contraversão: mostrou-se artisticamente dentro do seu propósito, do início ao fim.

O maestro não esteve durante todo esse tempo entre nós para desacreditarmos da possibilidade. Pertencia à mesma esfera deleuziana onde o virtual não era aquilo que falta à realidade, mas o que se engaja num processo de atualização seguindo um plano que lhe dá realidade própria. Sua busca era despertar-nos para a efetivação da possibilidade, mas sem esse peso de seriedade bem típica de quem vive fora de um caldo-de-cultura cunhada pelo saber: ele era o jogo, o brincante, vontade de ser ator, o escritor, tomar esses sons que ele via e entregá-los à nossa apreciação. O artista: o generoso. Um amante sem doença, que traz à luz tudo aquilo que será glorificado como celestial.

A dedicação única de uma vida: a Grande Arte como vida absoluta, que não pode ser atribuída a um sujeito nem a um objeto e que não se prende às vivências e intencionalidades de um sujeito. A imanência como vida é o movimento do infinito, para além do qual não há nada. E quem há de negar essa herança deixada pelo velho Giba? Quem há de negar a música antes do compositor, a melodia e a melodia-devida para todos nós, não para ele? A música que não se esgotará, que vem para nos desterrar da ilha e nos inflamar para uma opus irreverente, que não prestará serviço a vaidades, rabos-presos e cafés pequenos?

Quem de nós realmente, nesse instante, entende ou entenderá esse legado?
Quem, que se intitula artista, entende esse quase labirinto da imaginação, a quase vertigem da representação do que está diante do mundo? Se ainda resta essa nesga de alguma sobriedade quanto ao real jogo do imaginário, o que nos impede de seguir adiante com o legado do maestro? O despreparo, a ignorância? Se é conhecida a técnica, quanto do nosso eventual saber converter-se-á no poder de mobilizar uma plateia: ir além do velho Giba?

A perda, assim como o trauma, sempre nos pegará de surpresa. Acomodá-los, para que não mais atrapalhem, é engajar-se na possibilidade de atualizar uma presença quando ela não for mais carne. É engajar-se na possibilidade da transformação quando tudo não estiver mais funcionando, ou funcionando muito mal. Um processo: de dentro para fora. Um processo: a matéria-bruta da Literatura. Uma quase sintonia fina que move a batuta, a caneta, o pincel, o gesto, o passo. Qual o mundo pequeno e estreito que andou nos prendendo?

Ele veio no azul do mar e saiu no Fuga de Nova York. Veio nas matas verdes e floridas de um lugar paradisíaco e saiu num deserto extenso sob uma fermata do cão. A ilha-presídio, além de rançosa, está mais áspera a partir desse instante: presos na necessidade de sobrevivência, nas verbas, nos conchavos, nos sebastianismos, nos editais, nas presunçosas redenções, nas organizações sociais, nas alcovitagens, nos cabotinismos, nas vaidades, de costas para a plateia e de frente para a destruição. Ele nos livrou da barbárie da lei e nós lhe entregamos, 93 anos depois, a lei da barbárie. Ele nos conduziu para a Grande Arte e nós lhe devolvemos uma quantidade abissal de tralha. Ele se esmerou nos grandes arranjos e nós, talvez, lhe impusemos os mais vis arranjos de bureau. Ele deixa um lugar onde os relacionamentos valem mais do que a capacidade.

Desejo pessoal, utópico ou não, renascentista, iluminista ou romântico: pouco importa. Desejo pessoal de um lugar onde existiria a Grande Arte, e com a plateia junto. Para orgulhar o maestro quanto estivermos face a face, diante dele, novamente.


Marcelo Rayel é tradutor e escritor

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