segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Mendes nos 25 anos do Ars Viva  (autoria desconhecida do fotógrafo)


Por Maurilio Tadeu de Campos


O santista Gilberto Mendes deixou-nos no primo quadrante do primeiro dia de 2016. Em outubro de 2015 fez 93 anos; parecia um menino, tal a sua alegria de viver, seu entusiasmo e o seu exemplo para nós, que, como ele, lidamos com a arte. Ele era um gênio, um especialista da composição pouco convencional. Tive contato com diversas composições suas e interpretá-las era um quase desafio que a mim proporcionava imenso prazer. Trabalhamos juntos por mais de duas décadas na organização do Festival Música Nova e, nessa época, conheci melhor não apenas o músico, mas o aplicado e organizado empreendedor artístico. 

O que eu mais poderia dizer sobre Gilberto? As informações que tenho dele, muitas delas que ele mesmo as revelou, não caberiam num simples texto. Posso dizer o que julgo serem as mais importantes. Ele iniciou seus estudos  musicais aos 18 anos, no Conservatório Musical de Santos, com Savino de Benedictis e Antonieta Rudge. Compôs sob a orientação de Claudio Santoro e Olivier Toni. Frequentou o Ferienkurse für Neue Musik de Darmstadt, na Alemanha, em 1962 e 1968, recebendo aulas de Pierre Boulez e Kartheinz Stockhausen.

Signatário do Manifesto Música Nova, foi pioneiro no Brasil no campo da música concreta, aleatória, serial integral, experimentando novos grafismos e novos materiais sonoros, incorporando à sua composição a ação do teatro musical. Conferencista, colaborador de diversos jornais e revistas brasileiros, foi diretor artístico e programador do Festival Música Nova, iniciado em Santos nos anos 60, o mais antigo em seu gênero em toda a América. Foi professor do departamento de música da Escola de Comunicações e Artes da USP. Membro honorário da Academia Brasileira de Música, do Colégio de Compositores Latino-americanos de Música e Arte com sede no México. Foi um dos criadores da Sociedade Ars Viva e do seu Madrigal, em 1961. 

Sua obra musical vem sendo executada nos cinco continentes, principalmente na Europa e na América do Norte, destacando-se entre elas Santos Football Music, Saudades do Parque Balneário Hotel, Nasce-Morre, Beba Coca-Cola, Ashmatour, O Anjo Esquerdo da História, Vila Socó Meu Amor, Ulisses em Copacabana Surfando com James Joyce e Dorothy Lamour, além de inúmeras peças para vozes e instrumentos. Sua produção mais recente foi influenciada pela tendência da nova consonância, que retoma características das músicas tonais e modais. Gilberto foi também autor de vários livros e também foi e será objeto de outros, produzidos por escritores que também tornram-se seus admiradores.

Laureado com diversos prêmios no Brasil e no exterior. Em 2004 recebeu a insígnia e o diploma, no grau de comendador, da Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura, em Brasília, das mãos do Presidente da República. 

Falar de Gilberto Mendes, portanto, não é tarefa fácil. Por anos ele foi, para mim, um quase mito; tempos depois, um grande amigo, sempre bem-humorado e extremamente simples diante da sua genialidade. Quando nos encontrávamos, em eventos ou nas ocasiões em que ia à sua casa, conversávamos sobre vários assuntos. Foi um imenso privilégio conviver com ele. Nesses contatos pude perceber a sua inquietação e a perene jovialidade, expressadas na constante vontade de produzir. Algumas vezes ele comentava estar compondo algo novo, falando com tal naturalidade que eu não conseguia mensurar essa produção, só tendo a exata noção da qualidade do que ele, de fato, compusera, quando tomava contato com as peças em audições ou por meio de gravações. Meu último contato com ele foi por telefone e ocorreu no dia 22 de dezembro de 2015, um papo animado, divertido, de quase uma hora, quando falamos coisas sérias e outras bastante engraçadas. Rimos muito, lembrando inúmeras situações as quais convivemos juntos ao longo de mais de 40 anos de amizade. Nessa nossa conversa ele me confidenciou que estava terminando um livro novo e que compunha sem parar, para instrumentos e vozes. Nunca irei esquecer esse último contato. Percebi, quando tive notícia da sua partida, que fora uma saudável e gratificante despedida. 

Gilberto poderia estar morando em qualquer parte do mundo porque seria bem recebido onde quer que fosse residir. No entanto, preferiu viver em Santos, sua cidade natal. Perguntei uma vez a ele o motivo da preferência pela sua cidade. Ele revelou que o ambiente marítimo, o mar e o porto, eram as suas referências e, segundo ele, viver distante disso tudo seria impossível. Sua obra, certamente impregnada da maresia contida no ar santista, representa muito bem essa simbiose do homem com a sua cidade. E Santos deve muito a esse cidadão do mundo, que soube levar o seu jeito simples de caiçara para todos os lugares que o reverenciaram e perceberam nele a grandiosidade típica dos grandes mestres.

Todas as homenagens que Gilberto vem recebendo são insignificantes diante do seu grande talento. A sua naturalidade nunca o permitiu estar envaidecido porque tudo o que ele recebeu em vida e tem recebido agora está impregnado de muito carinho, respeito e admiração que experimentamos e que iremos sentir por ele, para sempre. Quando ele se foi, lembrei Drummond e, entre lágrimas, num sussurro parafraseei o poeta: “Vai, Gilberto, ser gauche...”  E ele será, como bem define o título de uma de suas composições, o eterno “Anjo esquerdo da História”, o menino grande, que habitará para sempre as nossas lembranças, ocupando um privilegiado espaço nos nossos corações. 

Maurilio Tadeu de Campos é professor, poeta e escritor. Presidente da CONTEMPORÂNEA - Projetos Culturais. Diretor de Relações Públicas da Sociedade Ars Viva e Membro efetivo da Academia Santista de Letras.


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