sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016



Maria Balé (texto e imagem)


Não sou afeita a comemorar aniversários. O meu, então, jamais coincidiu com o calendário dos meus nascimentos. São anônimos os dias em que algo de novo redesenha o mapa da minha trilha. Nas lembranças que tenho dos meus tempos de criança, os sentimentos de aniversariante eram contraditórios. Ambicionava as conquistas da mudança de dígito, é certo. E não achava graça alguma em ficar mais velha. Adulta, acho menos ainda. Não raro, me esqueço da data querida de pessoas que me são caras. Suntuosa gafe, eu sei. Algumas tomam esta falsa displicência como desconsideração pessoal. E lá vou eu, me desdobrando em desculpas e cumprimentos atrasados para não contundir a amizade. 

É insólito, imponderável talvez, no entanto, quando alguém dos meus vínculos afetivos morre, esse dia fica escarlate na minha memória, e me lembro, de véspera. Não me refiro às mortes nossas de cada dia, das quais ressuscitamos num arremedo de mito. Reporto-me à finitude da massa orgânica da qual somos compostos. E decompostos, por suposto. 

Falar sobre morte, o mais cultuado dos tabus na cultura ocidental, é incômodo, mas, uma vez que se nasce, é inegociável, se morre, sabemos. A única saída é a de cena.  

O dia do nascimento é um dado, uma informação. Só sei porque me contaram. Não estive presente na hora do parto. Não compartilhei a emoção do primeiro choro, tampouco o hálito de placenta da existência fora do útero. O dia da morte é outra coisa. Tomo consciência em tempo real. A dor da perda, se é minha, é dos meus, é do amigo. E do vizinho, talvez. Se é daquele por quem tenho apreço, no mínimo, respeito. É ecumênico o fluxo de lágrimas misturadas, onde o luto é de todos. Outros lutos são chorados. E os ilustres desconhecidos do velório ao lado são parte da dor difusa. Há uma insuspeita alegria na tristeza de um funeral. Ela apreende, ainda que transitória, a ansiada equidade entre os homens. A solidariedade que impera é genuína, instintiva da raça humana, diferente da solidariedade compulsória dos apelos da rotina. Numa sala de velório, se dissipam desavenças, se esgarçam dogmas e hierarquias de qualquer natureza. Seria efeito mágico do impregnável perfume dos crisântemos? E no eloquente silêncio do cortejo, o sublime exercício da compaixão.

Para quem acha tais considerações um tanto lisérgicas, eu confesso que eu também. E para não dizer que não há poética nessa vida severina, aproprio-me do desabafo de Manuelzão, das Veredas de Guimarães Rosa. 
- Não tenho medo da morte porque sei que vou morrer, tenho medo é de amor falso porque mata sem Deus querer.  

E que me salve a poesia.

*Esse texto venceu o primeiro prêmio na categoria crônica no Concurso ACESC de Literatura.  - Associação dos Clubes Esportivos e Sócio Culturais de São Paulo.

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