quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016



Cartoon from Harper's Weekly, 1869 


Por Manoel Herzog


Minh'alma cigana, esse jeito bandido e meus olhos cor de mel sempre me levaram a mudar constantemente. Por isso conheço no fundo do âmago do miolo do dente cariado a dor de ser um nômade. E o quanto custa, literalmente - as empresas de mudança cobram os olhos. Por isso escrevo este depoimento, pra me solidarizar com meu irmão Zê Carota, lá de Brasília, que tá mudando e eu não posso fazer nada. Cogito mesmo pegar o velho Fiesta e a carretinha pra ir lá dar uma força. Mas um fato pretérito logo me tolhe o arroubo de fraternidade. Ajudar em mudança pode ser pior que ficar de boas, olhando o outro se lascar sozinho. Explico:

Em 1982 Vidal, recém casado c'a irmã do Tonico, resolveu mudar da casa da sogra (e do Tonico e seus seis irmão) pra uma casinha alugada duas quadras abaixo. Tempos de dureza pra Vidal e nossotros, resolveu-se prescindir dos serviços de um carreto profissional, afinal eram só duas quadras e a mobília bem pouca. Fumo de carrinho de mão. Vidal ocupava um quarto da casa. Usava a TV comunitária, a cozinha de todos, o banheiro etc. De seu e da esposa eram só cama colchão e guarda-roupa, além de objetos de uso pessoal. Três viagens de carrinho matavam com galhardia a tarefa, mas achamos de ser econômicos e fazer numa só.

Carrinho no chão, jogamos alguns trecos de forma a encher o fundo do veículo. Botamos o colchão atravessado no carrinho, fazendo as vezes de uma prancha de carreta. Por sobre o colchão o guarda-roupa, e dentro do guarda-roupa as panelas, roupas íntimas, xampus, cabides, tudo de miunça.
Já naqueles tempos a decadência da movelaria se fazia notar. O desmatamento desenfreado extinguiu a boa madeira deste país, e os móveis populares eram feitos (como hoje ainda são) de uma mistura sórdida de serragem com cola, fraquíssima. Era o caso do dormitório Bartyra que pertencia à família Vidal, e que ali era usado à guisa de contâiner.

Éramos tão jovens. Lembro que ensaiava os passos primeiros da vaidade, e gostava da Rose. Não sei que pensamento estúpido me fez pensar que seria de péssimo tom Rose me visse guiando um carrinho de mão no meio da rua, com as tranqueiras do Vidal e sua senhora.

Montada a estrutura no carrinho: panos, colchão por cima, guarda-roupa cheio em cima do colchão, de modo a evitar o guarda-roupa se desmanchasse. Fomos, eu na condução do veículo, Tonico ao lado direito, escorando, Vidal do lado esquerdo. Partimos.

A única dificuldade que se podia enxergar no breve percurso era a travessia da Avenida Brasil, movimentada via do populoso bairro de Jardim Casqueiro, onde vivíamos, por onde passava o histórico ônibus Santos/Canal 6. Saímos em fausto, abençoados pela mãe do Tonico, uma senhora finíssima, que disfarçava bem a dor de ver a filha partir. Fingia mesmo, com competência de diva do teatro, alguma alegria por se livrar da parelha. O início de viagem foi promissor, até adentrarmos a movimentada avenida. Lá, o histórico ônibus Santos/Canal 6 fez-se presente de inopino, entrou rugindo a ponto de nos atropelar. Tremi de susto, os amigos vacilaram na escora, e o indômito guarda-roupa Bartyra abriu-se feito um pudim, vomitando panelas e calcinhas da irmã do Tonico. Quando o ônibus passou, e o susto, eu e o Tonico sentamos no chão pra segurar a barriga, que doía de tanta risada. Iríamos, por dever de solidariedade, recolher tudo e montar o guarda-roupas, obviamente. Vidal era merecedor dessa consideração. Mas apontaram na esquina a Rose e a Leila. Importa frisar que, da forma que eu amava a Rose, o Tonico amava a Leila. Se nos vissem fazendo aquela mudança infame nossas esperanças amorosas desmontariam feito um guarda-roupa Bartyra. Fugimos, deixando o Vidal na roça, a catar seus cacarecos, xingando a gente de tudo quanto é nome. Solidariedade tem limite.

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