quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016




Por Carlos Pessoa Rosa 


“Desaforismos & tramas de Metrô”, título da presente obra de Flávio Amoreira Viegas, é por si uma provocação do autor, uma sinalização de um atrever-se, de uma prática de ousadia, na narrativa. Sugerir tramas de Metrô, instrumento de mobilidade urbana pontual e inflexível, representante mais puro de uma mobilidade estagnante e utilitária, não deixa de ser uma provocação ao sempre o mesmo, sugerindo ser possível ali práticas de resistência, a narrativa sendo uma delas – devolver ao imaginário um trem que permita evolução e tomada de consciência à multidão.

Que viagem nos sugerirá o autor? Os rastros nos apontam para a negação da razão e afirmação do acaso, para a renúncia ao fingimento recriando os espaços e retomando os afetos, desconfiando do sacro em nome do profano e dos mistérios. Para isso há necessidade de um mergulhar no Outro, tê-lo dentro do narrador, em uma viagem que permita um desencontro preciso, transformando a viagem em um instrumento de guerra.

É bom tocarmos na questão de o próprio autor ser um errante entre duas cidades: Santos e São Paulo. Passa parte de sua vida recolhido diante do mar, local das transformações e dos renascimentos, cujas águas moventes representam o transitório e o ainda informe, lugar das paixões e do canto das sereias. É onde, acolhido em concha materna, toma viagem oceânica através da linguagem e desconstruções dos afetos, das nuances do espírito e da carne. É a cidade de baixo.

Na cidade de cima, o autor é um errante mergulhado na multidão à procura do não-lugar, na direção do choque, criticamente potente, vive entre o fascínio e a reação, é ocioso onde a velocidade é a regra, mas nunca sem reagir ao ser tocado, apresentando-se onde há fervor do humano. É de seu interesse o Outro urbano, o que resiste e desafia os falsos consensos publicitários, daí a afinidade pelos locais onde fervilha a criatividade. 

“A cidade ofereceu-me autômato; o Trianon esverdeava a barafunda de sensorialidades: Home Theater alumiava Coppelius às gargalhadas. Um holograma no feitio de minha carnalidade poética : retinia policromático em sinestesia. A mulher dos sacos embrulhada sorria estar sendo filmada : era performer natural do desalento. Até meu antro era solecismo devassado; Sampa entrava no antro, autofagia, tínhamos comido tudo: regurgitava. Meu joelho enfiara-se na escada que dava ao ensimesmado pouso de dizer comigo. Pus em ordem minha coleção de slides de praia”, diz o narrador em Mark Mutek.

Como compartilhar, transmitir e narrar, criar e recriar, sem uma prática errante desestabilizadora do que hegemônico, uma atuação de resistência e insurgência? Errar pela cidade implica no afastamento familiar e do cotidiano na direção do estranhamento, de um modo radical, até maníaco. 

“Dispo-me do caminho: sou ido e vindo”, diz o narrador em Nazca. Não sou o viajante que vai e vem sobre trilhos, rígido em origem e destino, mas o que experimenta e acrescenta, que reage e propõe: sou ido e vindo. Entre Sampa e Santos “É aqui na orla perolada onde mora a poesia sem parecença que não outra que o eterno tempo intervalado da legião de almas que por ti viveram para olhar a passagem de futuros e remotos momentos / adejar de peixes: tudo passa e só tu mar fundeado na pedra desde infância das eras idas e vindouras.

Em “Desaforismos & Tramas de Metrô” o flâneur parisiense de Baudelaire, o londrino de Poe e o carioca de João do Rio dão lugar ao flâneur tranzmoderno. Estamos diante de um texto desafiante e desafiador em viagem, tramas de Metrô(polis).


1 comentários:

  1. Desafiada estou e saudosa da escritura amorosa- desamorosa-torturante de Flávio.

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