terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

The Spinet (Thomas Wilmer Dewing, 1902) 


Por Marina Ruivo


Fui fazer a unha e quem me atendeu foi uma moça que costuma ser muito calada, por mais que eu puxe assunto, sorria ou faça graça. Seu rosto largo e arredondado sempre sério, quase triste, os olhos baixos e estreitos. Não gosto de cair com ela. Afinal, ainda que eu não seja fã de conversas de salão, é desconfortável ficar com as mãos estiradas, a pessoa trabalhando em cima delas, mandando apenas com os olhos que eu bote na água quente, depois tire, e o silêncio adejando, pesando, enchendo as paredes e seus azulejos brancos. Intimida.

Uma total desconhecida fazendo um serviço tão íntimo quanto o de deixar suas unhas arrumadas é algo vexatório e que só faz aumentar a vergonha de não saber fazer as próprias unhas. Eu devia de me esforçar pra aprender. Além disso, uma vez ela me arrancou um bife do pé direito que me deixou uma inflamação de dias. Passei a ter quase pânico de suas mãos pesadas, mas seria difícil dizer claramente que eu não queria fazer pé e mão com ela, em plena quinta-feira e sem ter agendado um horário. Não dava pra chiar.

Com coragem, entreguei primeiro minhas mãos. E ela, pela primeira vez, estava bem falante. Perguntou da escola do meu filho, que horário ele estudava, se eu estava satisfeita, e por aí afora, até me questionar, sem grandes delicadezas, se éramos apenas eu e ele na casa. Confirmei e mencionei, bem de raspão que não gosto de ficar contando minha vida por aí, que eu era separada. Foi o suficiente.

Bia passou a disparar frases intermináveis sobre os homens e sobre como eles são todos iguais e não se contentam com uma só e como é mesmo melhor ficar sozinha do que mal-acompanhada. O pior, ela dizia, é que sempre sobrava tudo pra mãe. Nessas horas eles não queriam saber de nada, sumiam pelo mundo e nada de ajudar, nem com serviço nem com dinheiro, sobrava era pra gente. Bia lixava minhas unhas com raiva, olhava das mãos para o meu rosto, exigindo que eu me pronunciasse. Ela toda era uma montanha de impropérios que, obviamente, me fizeram deduzir que cuida sozinha da filha pequena e que, provavelmente, o pai da criança a largou por outra mulher. Por outro lado, e de forma misteriosa, tanto palavrório me acuou. Me vi sem nem ao menos tentar relativizar as afirmações e apenas murmurei concordâncias, acabrunhada. Minha história não era como ela falava, mas valia a pena contestá-la se ela falava mais de si do que de qualquer outra pessoa? 

Continuei na minha anuência quase sem som, mas graças não há assunto que não acabe. E ainda que este tenha durado bastante, foi pouco a pouco morrendo conforme a tevê ganhava a cena. Uma vinheta fez que Bia voltasse o rosto na direção do aparelho pendurado quase no teto, concentrando-se numa cena em que uma noiva estava prestes a entrar no altar. Por educação, novamente, me vi olhando pra tela e perguntando do que se tratava. Logo fui colocada a par e ainda tive que dar um jeito de explicar a meu filho, que também queria saber quem era que estava casando. Ao longo de três blocos, vimos a moça abandonar o noivo em pleno altar, sair correndo, entrar num carro e rumar a toda pro aeroporto, em busca de alcançar seu verdadeiro amado, que estava prestes a embarcar para algum país longínquo. Agoniados, torcemos os três pelo reencontro do casal que se amava de verdade, mas cujo casamento estava impedido pelas tradições religiosas da família da moça.

Felizes, finalmente assistimos ao beijo do casal, e os olhinhos pretos e de cílios longos de Bia vibravam de emoção. Depois do longo beijo, até meu filho sentiu que podia parar de olhar pro aparelho e voltou tranquilamente à brincadeira com seus alienígenas. Mais uns minutinhos e minhas unhas vermelhas estavam finalizadas. Com alguma imperfeiçãozinha aqui e ali, mas nada que comprometesse o resultado. E meus pés não inflamariam, eu aproveitei o papo e pedi cuidado, contei até do acidente da outra vez. Já sorridentes e refeitas, nos despedimos alegres. Mesmo que todos os homens sejam iguais, mesmo com toda a raiva que ela tinha jorrado, os insultos, tudo, o amor ainda emociona e comove. Nada como um beijo de amor, o sonho de um beijo de amor.

Caminhando de volta pra casa, as mãos duras e de dedos abertos com receio de borrar tudo, os pés arrastando os chinelos na busca da medida exata que possibilita não largá-los de vez, perdendo-os na pisada, mas também sem botar muita força pra não correr o risco de raspar a unha na própria sola, eu não conseguia tirar o sorriso do rosto. Parecia bonito isso, só que era estranha a mudança tão repentina. Se não tivesse acontecido na minha frente a transformação de Bia, jurava que era história. Tudo muito encaixadinho, ajeitado, causa e efeito e correspondência e sei lá que mais. Incomodava.

Deixei pra lá incômodo e fui às atividades do dia, que ainda eram muitas. Foi só bem à noitinha, depois de ver meu filho e seus muitos bonequinhos, o bandido, o policial, os monstros em combates terríveis, e voltar para a minha leitura do diário de Anaïs Ninn, que voltei a pensar em Bia e sua raiva dos homens logo esquecida diante da contemplação e torcida pelo final feliz do casal. Não é bem o amor que comove. É sempre ela, a ficção, esse brinquedo de gente grande que nos permite experimentar não só o que não vivemos, mas organizar o que já vivemos. Que encaixa passado, presente e futuro, dando-nos a noção da história, da vida. A ficção do amor, da doença, da loucura, de qualquer coisa. Com alienígenas, com um livro que aparenta trazer a vida real de alguém, escrito diária e obsessivamente ao longo de anos, como fez Ninn, ou com um beijo de novela. Ah, ficção... 





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