quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Guy Veloso


Por Manoel Herzog


Jardim Casqueiro, 1981. Por curioso que agora ali vá funcionar a delegacia da mulher, falou-se bastante de um assassinato no Bar São Jorge. Fechado por mais de vinte anos, agora estão raspando as letras inclinadas do título e arrancando as velhas portas de metal, daquelas de enrolar, enferrujadas. Ainda tem a porta estreita, de madeira com um postigo, ao lado. Os vitrôs superiores, plantados acima das portas, translúcidos de poeira. Por um vidro quebrado ainda se via a estatueta de São Jorge numa prateleira, cavaleiro fincando sem dó a lança no bucho de um dragão caído. O pé de cuca antigo, de grosso tronco, fazia sombra na soleira. O antigo dono, um tal Jorge, descoberta a traição da mulher com um pinguço da noite, João Baptista, a tinha matado a faca depois do expediente, entre caixas de cerveja, trancando o bar, onde se enforcou acima do cadáver da infiel. 

Batista pensava se o corpo ainda pendia da corda, esqueleto suspenso desde duas décadas. Se a língua, feito gravata negra, feito relíquia de um santo Antônio de Pádua, não tendo apodrecido, ainda estava lá, a engravatar o esqueleto. Se o corpo inteiro, pendurado, ficou íntegro igual corpo de um santo Francisco de Assis. Se a morta estava deitada ao pé do penduricalho macabro, corpo preservado igual aquela santa Catarina Labouré. Ele tinha mania de estudar vida de santo. Lembrou ali, não sabe porquê, da cabeça de seu xará são João, degolado para diversão da mulher do rei. Essas coisas se especulavam, mas uma era fato: ninguém tinha entrado no bar desde o crime. 

Certa madrugada de vagabundagem Batista e seus amigos decidiram subir, um nas costas do outro, para ver lá dentro. A escuridão atrapalhava, e mais ainda o pé de cuca, que obstruía a luz do poste com sua copa abundante. Conseguiram abrir um basculante de vitrô e enfiar a mão, desviando da estátua de São Jorge Guerreiro, topando a estante de bebidas. Tonico sacou uma garrafa empoeirada de conhaque, o rótulo carcomido.

Diz que quanto mais velha a bebida, melhor.

Devia ser verdade. Era um conhaque diáfano, um álcool depurado por anos de sofrimento e volatilidade, só tinha ficado a alma das uvas. Provocava um estado etílico superior a que não eram acostumados, bebiam pinga jovem e barata, com groselha, no bar do portuguesinho em frente ao campo, aguentando a dor de cabeça dia depois. Ali mesmo secaram a garrafa.

Deve ter muito mais.

Assim ficaram pelas noites vadias, subtraindo garrafas uma a uma, até os braços não alcançarem mais. Havia prateleiras abaixo cheias de alcoóis nobres, testemunhas do crime que ali evaporavam, há duas décadas purgando maldade e aldeídos, deixando só aquele elixir. Um conhaque vetusto, um pippermint adocicado, um cynar já quase sem álcool, as cachaças de antigamente, Tatuzinho, Morrão e Três Fazendas, depuradinhas.

Dia seguinte acordavam tarde e iam pro ponto de ônibus catar guimba. Vez por outra davam sorte, algum peão acendia um Continental e o coletivo apontava lá longe, na curva. Cigarro bom, com filtro. O passageiro dava ainda duas ou três tragadas fortes, fazia esquentar uma brasa pontiaguda. Dividiam, mais de três tragadas cada um. Tonico gostava do torpor do fumo, Batista porque ficava de pinto duro, e Chico, mais velho, gostava mesmo de fumar, não tinha mais estas reações de iniciantes. Era raro uma alma caridosa ceder aos apelos dos moleques. Fosse pela economia de quem dava duro pra comprar o maço ou por oportuno moralismo, a maioria negava. 

Moço, arruma um cigarro?

Toma vergonha, moleque, tu lá tem idade pra fumar?

Chico teve a ideia:

E se a gente entrasse e pegasse tudo de uma vez?

No catecismo Padre Antonio Olivieri aconselhava distanciar do pecado, e ganância é pecado. Mas pecadores já eram, tinham subtraído.

Não roubarás.

A quantidade de garrafas não alterava a pena, se é que havia uma a cumprir. Esta, pelo menos, era a opinião do Tonico, mais ousado, ou mais tendencioso ao mal, ou menos advertido. Batista, ainda que carregando a fama de medroso, preferiu ponderar. Tinha conversado com Dona Célia também.

A velha falou que não se deve mexer com Ogum. Perguntei se tinha problema tomar aquelas bebidas, ela falou que o bar era guardado, que Ogum não ia gostar da gente mexer nas coisas dele.

Eu acho é que a macumbeira quer te dar.

Luxúria é pecado. 

Volta e meia Dona Célia chamava os moleques pra algum trabalho no terreiro, carpir um mato, caiar um muro, enquanto fumava seu cachimbo. No começo tinham medo, depois se habituaram com as figuras. Batista gostava do Xangô, Chico do Oxóssi, Tonico de Ogum. Foi ela quem falou que Ogum era São Jorge. Tonico, filho do santo, somou seu voto favorável ao do Chico e decidiram invadir o bar naquela noite. Batista acabou vencido.

Era uma noite clara de abril, a lua parecia um sol. Às quatro da manhã o Casqueiro estava deserto, facilitando o saque. Não chegasse o vazio da rua, eram acobertados pela árvore de cuca. Com um pé-de-cabra arrombaram a porta. Cedeu com facilidade estranha, como tivessem deixado aberto por dentro. Invadiram. A lua invadia o bar também, transpassando furos na rede de folhas do pé de cuca. Os olhos habituados enxergavam bem, teias de aranha nos cantos do teto, a prateleira de garrafas, maravilhosa biblioteca, queriam ler tudo, beber, embriagar da poesia engarrafada. Um ventilador de teto no centro da laje, nenhum esqueleto pendurado, nem mulher morta no chão, um bar comum. Batista, visionário, chegou a imaginar os tempos de fausto do bar, os homens bebendo no balcão de mármore, um mulato de bigodinho dedilhando um violão de sete cordas, outro no pandeiro, um negro gordo cantando com voz de barítono um samba ancestral. Malandros jogando sinuca, vagabundos tomando pinga e cuspindo no chão, um mostruário de cigarros imenso, as marcas antigas, Kent, Beverly, Continental sem filtro, Yolanda. Os operários das indústrias que se instalavam em Cubatão, os portuários, estivadores, os marujos velhos. As donas de casa que falavam mal da mulher do Seu Jorge, dono do bar, protegido de Ogum, afilhado do santo cristão de mesmo nome. Foi aí que, na sua visão, identificou o malandro João Batista, seu xará, de flerte com a mulher do Seu Jorge. A voz do Chico chamou do devaneio.

Vai, sem demora, pega o que der.

Num saco de estopa enfiaram as garrafas que podiam, estoque pra diversas noites. Dali seguiram, margeando a rua das torres de eletricidade, até o Sítio dos Ruivo, onde esconderam o produto do furto, com exceção da garrafa de uísque que tomaram pra comemorar. Deitados sob a lua foi que o arrojado Tonico lançou:

A gente devia voltar era lá e catar tudo, logo vão descobrir e acaba a festa.

Chico concordou de pronto, seguido por Batista, embriagado e tolhido da reserva de sempre. Dona Célia dizia que ele, o filho de Xangô, de natureza libriana, considerava os dois lados de tudo, e muitas vezes custava a tomar decisões, deixando passar oportunidades. Falava isso acariciando o pinto de um Batista assustado e sem reação. Dona Célia era Iansã, deusa dos mortos, melhor respeitar. Ela falou que ele ia ter duas mulheres, uma Iansã e uma Oxum, e que ia sempre viver dividido. 

Não cobiçarás a mulher do próximo.

Mostrou uma figura na carta de baralho com o número seis, um homem cercado por duas mulheres, uma jovem, outra madura. O corpo do homem ia para a jovem, mas seus pés se voltavam para a mais velha. Dona Célia era misteriosa.

Voltaram no bar. Tudo parecia certo, só não contavam com a porta trancada. 

Trancaram por dentro.

Arromba.

Deram um encontrão que fez a tramela estalar. Mesma hora que a luz do poste apagou, uma nuvem cerrou a lua e começou o vendaval. Saíram correndo. Batista ainda olhou pro postigo, a ponto de ver um rosto de mulher com um sorriso desconcertado, como se os houvessem descoberto e interditado. Uma mulher bonita, que ele achou parecida à Oxum estátua do terreiro da Dona Célia. Uma Oxum guardada pelo ciumento Seu São Jorge, Ogum guerreiro e vingador de sua honra. A mulher do dono do bar. 

Fugiram pros lados do Sítio dos Ruivo. O vento apertava. Escutaram um barulho de trovão e, olhando para trás, viram uma telha de zinco que os perseguia rolando com estrondo no vento. Chico lembrou:

Uma vez, na Vila Socó, a folha de zinco cortou a cabeça de um cara.

Ogum é o deus dos metais.

Quem com ferro fere com ferro será ferido.

Enfiaram-se no mato em lugar seguro até maneirar o vento. Em casa Batista passou a noite dedilhando o rosário de madeira preta da mãe. De manhã foram falar com Dona Célia. Já sabia: Briga de Ogum com Xangô. Oxum abriu a porta uma vez, Ogum descobriu e vingou sua honra. Oxum queria abrir pra Xangô, Xangô queria entrar, mas Ogum não deixa. Briga antiga. Teriam que devolver toda a bebida. 

Com você e com você – apontava de beiço pro Chico e pro Tonico – Ogum não quer nada, é só devolver a bebida roubada e não entrar mais na casa dele. O problema é com você, Batista. Não pode bulir com mulher dos outros. Oxum era mulher de Ogum e Xangô ao mesmo tempo. Por isso eles brigam.

Não tinha contado, mas São João Batista é o mesmo Xangô. Libra, Vênus, O Enamorado. Ogum guerreiro tem ciúme de Oxum. Precisa fazer sacrifício pra Ogum, pra Xangô, pra Oxum deixar em paz. Isso é o que dá vaidade e gula, Xangozinho. Pecados. Agora é passar a noite em penitência, no terreiro aqui com a velha, mode se livrar de encantamento e acalmar a ira dos deuses pagãos.


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