quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Francisco (Paco) Espínola

Por Adelto Gonçalves 
                                  
                                                           I
Embora seja dono de obra considerada um marco fundamental na literatura uruguaia do século XX, Francisco (Paco) Espínola (1901-1973) continuava inédito em outros idiomas. Esse estranho e inexplicável silêncio, porém, acaba de ser rompido com a publicação de seu romance Sombras sobre a terra (1933) pela editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP, em tradução de Erorci Santana, com texto de “orelhas” do crítico e poeta Ronaldo Cagiano. Além de nota do editor, o livro traz prefácio do crítico uruguaio Leonardo Garet, professor do Instituto de Estudos Superiores e do Instituto de Filosofia, Ciências e Letras, de Montevidéu, e a reprodução do prefácio da terceira edição, de 1966, publicada pelo Centro dos Estudantes de Direito de Montevidéu, escrito pelo crítico, historiador e ensaísta uruguaio (nascido na Argentina) Alberto Zum Felde (1889-1976).

Garet deixa claro, em seu prefácio, que foi com dor que constatou que em América Latina en su literatura (México, Siglo Veintiuno, 1972), obra de quase 500 páginas coordenada por César Fernández Moreno que conta com a participação de 27 colaboradores, adotada também no curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), não há uma citação do nome de Espínola. Só César Aira o reconhece em seu Diccionario de autores latino-americanos (Buenos Aires, Emecé, 2001).

E, no entanto, Sombras sobre a terra não fica a dever a outros romances paradigmáticos da literatura hispano-americana, como Junta-cadáveres, do também uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994), Os passos perdidos, do cubano Alejo Carpentier (1904-1980), Pantaleão e as visitadoras, do peruano Mario Vargas Llosa, O obscuro pássaro da noite, de José Donoso (1925-1996), e Trópico enamorado, do boliviano Augusto Céspedes (1906-1997), outra obra nunca publicada no Brasil, embora tenha o porto de Santos como um de seus cenários.           




O romance teve sua edição de estréia em 1933, em Montevidéu, e ganhou segunda edição em 1939, em Buenos Aires. Seguiram-se mais uma edição em 1966 e outra em 2001 (Clásicos Uruguayos), que inclui vários estudos preliminares, a propósito dos cem anos de nascimento do escritor. A edição brasileira surge agora depois que o editor Nicodemos Sena “descobriu” na livraria de alfarrábios El Galeón, na zona central de Montevidéu, um exemplar de 1966, indicado por seu proprietário, Roberto Cataldo, para quem naquele romance “está a alma uruguaia”.

II

Sombras sobre a noite, como se percebe pelo título, é um daqueles romances ligados ao (sub)mundo noturno e seus notívagos, na linhagem de Agonia da noite, de Jorge Amado (1912-2001) e outros poucos na literatura brasileira. A exemplo de seus congêneres hispano-americanos, aborda as relações humanas nas casas noturnas e nos prostíbulos. O protagonista, de nome Juan Carlos, é um órfão de pai assassinado e mãe vítima de tuberculose, que vive num imenso e solitário casarão aos cuidados da negra Basília e cresce no Baixo, el Bajo, como é conhecida a zona do baixo meretrício nas cidades latino-americanas, em meio a prostitutas, cafetões e outros seres marginalizados. Foi num prostíbulo que o jovem Juan Carlos encontrou refúgio e compreensão, além de iniciar-se nas artes do amor.

Autobiográfico, o romance não tem, praticamente, um enredo que se possa seguir de fio a pavio, mas é formado por episódios que antes constituem flagrantes do modo de vida daqueles que transitam por aquele mundo às avessas. As prostitutas, porém, são extremamente humanas e mesmo aqueles que vivem do suor de suas mulheres no ofício que é considerado o mais antigo do mundo não são apresentados como seres cruéis ou vis, mas como “namorados” ou apenas “rapazes” enamorados de suas amantes.

Não se pense também que o leitor aqui irá encontrar cenas tórridas ou eróticas. Pelo contrário. Haverá de perceber certo desencanto em cenas no bar de um prostíbulo em que há sempre um cantante de tangos, milongas e estilos (típica composição uruguaia para ser acompanhada ao violão) a lamentar a fatalidade daquela vida à margem, um purgatório para a entrada no paraíso que só virá com a morte. Por trás desse romance poético, ainda que realista, perpassa, porém, um sentimento de solidariedade com os menos favorecidos, os deserdados da terra.

III

Francisco Espínola nasceu, em San José de Mayo, a 4 de outubro de 1901. Era, portanto, maragato, como todo aquele que nasce no pequeno departamento de San José, que fica às margens do Rio da Prata e na área metropolitana de Montevidéu. O termo maragato aqui também tem a ver com os nossos maragatos, os sulistas que deram início à Revolução Federalista no Rio Grande do Sul, em 1893, contra os chimangos, os legalistas. Eram chamados de maragatos não só por causa do lenço vermelho que traziam ao pescoço, mas porque vinham do exílio no Uruguai, exatamente na região de San José, que fora colonizada por espanhóis procedentes da comarca espanhola de Maragatería, na província de León.

Espínola nasceu no seio de uma família de tradição blanca, ou seja, ligada ao Partido Blanco, de inspiração conservadora, cujo ideário, aparentemente, seguiu pelo menos até 1962, quando se filiou ao Partido Comunista Uruguaio. Foi professor e crítico literário e teatral. Combateu a ditadura de Gabriel Terra (1873-1942), advogado que ocupou a presidência da república uruguaia de 1931 e 1938. Alto dirigente do Partido Colorado, igualmente de ideário conservador, Terra liderou um golpe de estado em 1933, com o apoio do exército. Durante seu governo, colocou na prisão muitos adversários políticos, inclusive vários professores, como Espínola. Preso em 1935, Espínola seria felicitado na prisão por algu ns de seus algozes, que haviam tido a oportunidade de ler Sombras sobre a terra.

Sua estréia literária deu-se em 1926 com o livro de contos Raza ciega, no qual o crítico uruguaio Alberto Zum Felde viu similitudes com Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Escreveu ainda Saltoncito (1930), relato para crianças; El rapto y otros cuentos (1950); Milón o el ser del circo (1954), ensaio sobre estética; e Don Juan el Zorro (1968), três fragmentos de romance. Escreveu também peças de teatro. Em 1961, foi distinguido com o Grande Prêmio Nacional de Literatura do Ministério de Instrução Pública do Uruguai.

No artigo “El Bajo maragato cruza fronteras”, publicado no semanário Busqueda, de Montevidéu, de 19 de fevereiro de 2015, a jornalista Silvana Tanzi, a propósito da então presumível publicação do romance no Brasil pela editora Letra Selvagem, traça um perfil de Espínola com a ajuda de um artigo de Alfredo Mario Ferreiro (1899-1959), em que este poeta dizia que o escritor fazia parte de uma geração que “vivia em ritmo lento e podia passar horas conversando no boliche”. Segundo Ferreiro, Espínola vestia-se sempre de preto com uma gravata e colarinho quebrado e engomado, usado em camisas destinadas a trajes formais como o smoking. “Dias houve em que Espínola falou pelo espaço de oito ou dez horas. E parecia um minuto”, recordou Ferreira, que era seu amigo.

Espínola morreu durante a madrugada de 27 de julho de 1973, por coincidência dia em que ocorreu o golpe de Estado liderado pelo presidente Juan María Bordaberry (1928-2011), que instaurou um regime de exceção que duraria até 28 de fevereiro de 1985. Naquela manhã, os uruguaios acordaram ao som de marchas militares que eram tocadas nas emissoras de rádio, prenunciando um período de muitas perseguições, torturas e assassinatos de opositores à ditadura.

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Sombras sobre a terra, de Francisco Espínola, tradução de Erorci Santana, com prefácio de Leonardo Garet, prólogo da terceira edição por Alberto Zum Felde, texto de “orelhas” de Ronaldo Cagiano e nota do editor Nicodemos Sena. Taubaté: Editora Letra Selvagem, 5ª edição (1ª em português), 360 págs., R$ 40,00, 2016. Site: www.letraselvagem@letraselvagem.com.br. E-mail: letraselvagem.com.br.

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Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa

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