quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

                  Foto: Da esquerda para a direita, Roberta Ferraz,Érica Zíngano e Renata Huber.

Por Marcelo Ariel

Dando continuidade a minha cartografia da produção literária contemporânea, converso abaixo com as autoras do livro coletivo fio, fenda,falésia .

1) Falem um pouco sobre o processo de elaboração do livro fio, fenda, falésia?

Roberta Ferraz – O livro, para mim, foi se abrindo como um presente (um presente vindo do mar). Não teve muita preparação, tudo era possível, nada do que fazíamos era seguro ou programado, então a gente foi ‘ganhando’ o livro, aos pouquinhos, sempre assim, sem saber nada, quase nada, da próxima página, do próximo dia. Isso deu a ele e ao processo de escrita uma intensidade incrível, e acho que essa sua espontaneidade encantada e obscura tem muita relação com o fato de escrevermos a 6 mãos, juntas. Fora das solidões conhecidas. Em novas solidões. A gente não sabe para onde vai porque não decide nada sozinho, é tudo agora, junto, aqui. Acho que isso aparece muito no resultado final, no que falam os textos, no tom deles, no canto coral vermelho límpido, conchas de mar ecoantes, dele. Ganhamos um presente, fruto da entrega intensa ao acaso de estarmos juntas, com o lápis na mão. O amor – como cantam surrealistas atravessando eras, e todos os seres do encontro.


Érica Zíngano: Dois grandes encontros – deslocamentos, paisagens: Ilha Bela e Fortaleza, dois tempos diferentes de produção e elaboração em conjunto, convivendo com um terceiro corpo, criado a partir do encontro dos nossos corpos, dessa junção. Nesse novo lugar, onde as nossas fronteiras expandem-se naturalmente, foi necessário aprender a falar, a exercitar a prática do poema, a sua escrita, a leitura em voz alta, a viagem física e mental, um aprendizado que precisou de tempo. Entre muitas falas, murmúrios, livros lidos em conversa, também foi necessário aprender a ouvir a irrupção do silêncio e a lidar com a noção de distância. Por isso, penso que o livro conseguiu nos atravessar e sobreviver a seus riscos, conseguiu seguir para além de nós. E agora está livre, aberto, para ser desfolhado por outras mãos, desenhando novas geografias para o olhar.


Renata Huber: O livro teve um percurso próprio e enigmático. Metade acaso metade suor, foi ganhando corpo. Um corpo fragmentado, latente, fruto das "correspondências" por e-mail e ao vivo. Três mulheres e um cadáver era o título, ou algo assim, as tentações de Thanatos dando o tônus necessário. Emblema da morte e espectro do sujeito, os cadáveres vieram, e o imaginário que o termo despertou, em cada uma, envolve certamente muitos paradoxos. Voltando ao processo e à feitura do livro, digo que foi intenso, mágico, e só o foi pois houve entrega e desprendimento. Partilhamos um mesmo desejo e suscitamos vários, algo, mais que o livro um seu espaço, ritual, labirinto que implodiu para depois explodir, em verso e prosa, em uma série de questões, vivências desdobradas chamando outras, outros, e por aí vai. Já foi, digo, o livro aconteceu e tudo o mais é ficção, ou aquilo, isso, essa mania de dar voz ao que ali não foi dito, porque sempre incompleto, falho, em processo. O livro e as reticências. As outras dimensões.



2) Como vocês chegaram até 'o poema' ou como o poema chegou até vocês e qual o significado da poesia nas suas vidas, a criação poética prescinde o biográfico ou se alimenta dele?


Renata Huber: Isso é enigma. Mas tentando responder, imagino assim, uma via de mão dupla: a poesia vem, eu vou, e de repente encontramos. O "como encontramos" é talvez o poema. No meio tem a esfinge, a pedra, vai saber, uma voz brincando, uma criança traquina dizendo quente ou frio, gato mia, plaft. Há que se desconfiar, demonizar essa criança e dizer ok: onde tem fogo tem queda, queda e salto no sentido da consciência. Sinto a poesia assim, como o lento aprendizado de uma queda e um retorno, uma volta e uma revolta que estraçalha o biográfico e faz dele alimento. Eu me devoro, digamos, que eu, urubu de mim, me sobrevoo e me devoro nas mais estranhas relações. É uma luta. Um jogo. E o poema acontece, leva o tempo de um sopro e anos de escuta, o tempo de um corpo encontrar outro corpo e uma voz ter lugar, pouso e ressonância. No fio, fenda aconteceu e teve outro tempo, entre-tempos, não sei dizer. Às vezes demora mais, às vezes menos, quem sabe ainda nem chegou e isso é bonito, a espera, a força do possível como espera e luz entrando.


Roberta Ferraz - Bem, não sei se consigo responder a todas essas questões, aqui, nesta vida. Os desdobramentos infinitos delas. Acho que nem um sujeito extremamente cônscio de seu procedimento criativo tenha como dizer, numa plena única voz e vez, como acontece o poema. Talvez haja um sempre encontro, mesmo, entre essas dimensões variadas do poema, uma dimensão umbilical e orgânica, que se faz no movimento de meus órgãos, sangue, víscera; e outra, a dimensão que está no mundo, no mundo que entra para dentro do corpo, através dos sentidos, dos desejos, das projeções, das memórias fotográficas, da coleção de imagens guardadas na opacidade do dorso do espelho. Acho que o poema é um registro do encontro dessas muitas dimensões que o poema-em-si guarda em sua potência, em sua latência, em eu ladrar. Assim, vem, volta, ultrapassa, transgride, mata, restaura, o biográfico, o gráfico (linha, escrita) da vida, não apenas minha.


Érica Zíngano: Na minha varanda as plantas vivem. Vou à varanda todos os dias. Levo água às plantas. Na descrição que acabo de fazer há 5 elementos essenciais: eu, este corpo que leva água, plantas, que vivem recebendo água, com as mãos em concha levo exatamente isto - água - para respirarmos juntos, eu e as plantas, e também a varanda, espaço amplo, onde o mundo nos encontra, através da presença salpicada de luz, que todos escutamos, eu as plantas a varanda e a água, em concentrações variadas. Quando se vai todos os dias à varanda, com água, escrever a vida colhida ali, o corpo cria um hábito e o poema passa a ter espaço para se escrever na página, para se escrever com a vida na página, assim, todos os dias, é um hábito, com leves variações, conforme a incidência de luz de som, que vem vindo com a cidade, acontecendo ali, entrando, todos os dias, pela varanda, nesse espaço intermediário, entre o dentro e o fora da casa, do corpo. Convidei as meninas para a minha varanda, elas vieram. Também estive em outros lugares, à convite delas – e levei minha varanda em viagem, para onde vou. Foi assim o poema que escrevemos. Nesse habitar de lugares, os nossos, os do outro, aprender a ver e a escrever, com outras mãos, novas paisagens, cadáveres.



3) Como vocês vêem a função social da literatura e da poesia, se é que existe alguma e quais seriam na sua opinião os maiores problemas enfrentados pelos poetas/escritores de hoje?


Érica Zíngano: O problema continua o mesmo, o desafio do branco da página, do preto da letra, do corpo que escreve contra o branco, que escreve com a força do preto. Podemos dizer que o fundo, onde a página branca se encontra e respira, onde molhamos a caneta para beber tinta, muda ao longo do tempo: antes, o poeta recebia ouro da corte e escrevia sob encomenda, em louvor do reinado (e, mesmo assim, sabe-se que Camões morreu pobre), hoje o poeta vive, como todo mundo, enfurnado em apartamentos menores que 100m2, e com muita sorte com uma janela que lhe dá ares para a vista. E não vive disso. Não pode. Poesia não se vende, é para se desfrutar, seu inestimável aroma não tem preço. Poderia ser a propaganda da Mastercard: poesia não tem preço, para todas as outras coisas existe Mastercard. A palavra como função perdeu o status, mas o social ainda levará muito tempo para deixar de gritar na nossa porta, no lento, lentíssimo, trabalho de implementação do processo democrático que desejamos viver, sempre na esperança de que sim, pois, a desigualdade social, as diferenças...


Renata Huber: Acho complicado falar em função social da poesia, talvez porque a poesia é a mais "anti-social" das artes (rs). Ela atua pelas bordas, ao mesmo tempo que tangencia o corpo social, provocando-lhe cócegas, rasga a pele e atinge a estrutura do "ser", a linguagem. Neste sentido ela é política - como tudo o mais - é uma prática e uma "máquina de guerra", das mais sutis e poderosas. Essa máquina de gerar dis-curso, a arte poética, in-fluencia o corpo social, ou seja, coloca a vida deste corpo em fluxo, seja desterritorializando a "escuta", seja religando os "rios da fala", insuflando-lhes vida e dando-lhe sentido. Acho que a função do poeta, do artista em geral, é "curar", preparar o corpo e a alma para uma "boa morte", uma "boa vida"; o que é dizer a consciência, a criação da consciência, aquela que reflete o "ser", que entra em relação sagrada com o desconhecido em si, com o outro e o grande outro no outro, e assim vai. No fundo é isso, e o problema disso é um problema de lugar. Acho que quando o poeta tem consciência do seu "não lugar no mundo", o enfrentamento começa, e o maior enfrentamento é de si consigo mesmo, é a escolha, por exemplo, entre buscar aceitação ou simplesmente ser, escrever, sem que isso reverta em algum tipo de benefício, em algum "lugar protetor". Aí entra o mercado, as iscas do mercado dizendo vem: me compra que eu te compro e tu te tornas alguém aceito, alguém pronto a barganhar as migalhas do leitor. Não sejamos radicais, mas é assim que funciona, e se assim não fosse, sabe-se lá. Quem sabe a "balela" fosse outra. Com o mercado tudo vai bem. Publicar - ao menos isso - não chega a ser um drama, pois há muitas editoras, boas ou nem tanto. O drama é viver num tempo como o nosso, em que falta clareza, discernimento, em que vale tudo e nada vale, nada exceto "aquilo" que passa pelo "crivo", e como o "crivo" anda em crise e não sabemos o que seja, ficamos no ar, esperando passivamente que alguém resolva o nosso caso. Este, ao meu ver, é o grande problema: a passividade com que deixamos o nosso "barco" correr, a falta de atitude em relação ao que nos diz. É sempre hora de dizer, dizer-se, de esmurrar as paredes e provocar a derrocada, o movimento, algum sopro, algo. Algo no sentido estético-ético-religioso, um recomeço. Dia desses, em conversa com amigos, partilhamos um certo desconforto, um não saber mais argumentar, dizer porque um texto é bom, etc. Há uma sensibilidade nascente, sim, acho que toda época lida com isso, e os valores nascem assim, em conversa. Estamos perdidos, parece. E isso pode ser bom, se soubermos jogar, se o jogo não ficar restrito à dimensão egoica, se soubermos identificar, na história em curso, os "pontos sensíveis", passíveis de reflexão e diálogo. Não há diálogo sem alma e sem amor. Não há poesia, em sentido pleno, sem diálogo. Quem sabe "poetar" e "fazer alma" seja uma e mesma coisa: dia-logar o Ser, deixar que Ele devenha, seja, o inefável e sussurrante que se cria em movimento.


Roberta Ferraz - Hum. Acredito que tudo é política, tudo é social. E tudo se faz em linguagem. Respirar, por exemplo. Penso mesmo em ‘micro-políticas’, ou seja, como nossos gestos mais pequenos são gestos que fazem parte de um corpo social, com suas embutidas práticas, consensos, discursos, posturas. Não existe o ser ‘natural’, a-político, a partir do momento em que ele esteja respirando num espaço com outras pessoas, a partir, portanto, de seu nascimento. Assim o poema, como o barbante, a margarina, o shampoo de gatos, são políticos. Isso não significa que sejam éticos. (Sociais, são. São existentes na sociedade. Éticos, é já outra coisa... vai além do traço deixado no papel disperso por prateleiras e vendas. É o enigma que o poeta vive quando mastiga e saboreia a linguagem em seu comprometimento inefável. É um vasto enigma.) E aí talvez esteja a diferença entre o gesto e o objeto de arte e a outra maioria de coisas espalhadas por nossas casas. Aí está o ponto, nó que convida o escritor a se emaranhar, num intuito, penso que sempre, de ultrapassar limites, é um nó que convida ao desmanche, que vai desfazer os casulos normativos que a gente acaba internalizando. Daí o trabalho com a linguagem, de usurpá-la, revertê-la, bagunçar o coreto. No fundo essa utopia (quiçá?), de desbravadores do comum, de transgressores do óbvio. Os problemas dos poetas/escritores sempre serão imensos, ‘naturalmente’, porque o nó que os convida é um nó de contracorrente, contra-senso, dissenso. O oposto da linha reta que força o mundo em seus demais objetos. O poeta não quer facilitar as coisas, e isso lhes cria muitos problemas, por supuesto.



4) O que é a vida para vocês? E a Alma?


Érica Zíngano: A vida define-se pelo gerúndio, vivendo, já a alma, não posso dizer muito, é o corpo, e suas memórias, tudo tão misterioso, simplesmente o corpo, quem responde por mim. E são tantos os mistérios que nem sei, só a variação de humores rende muitas séries, esses dias pensei numa para fazer graça, porque adoro fazer graça, procurando usar uma pá de adjetivos: acordei...lírica, lúdica, cética, eufórica, nublada, cansada, faceira, acordei e por aí vai, uma infinidade de modulações. O corpo é esse campo de indefinido que nos faz sempre companhia. É com quem vivemos, nele e por ele, toda sorte de mesquinho e maravilhoso, do sublime à experiência mais insignificante. Não temos como escapar, é ele quem está presente nesse nosso mais imediato.


Roberta Ferraz – Não sei o que é a vida. Não importa exatamente saber. Agora, estar vivo me parece estar para sacar a charada, para ludibriá-la, brincar com o óbvio e o seu absurdo. Ou seja, descobrir jogos e maneiras de não se entediar. Porque acho que não vale a pena acreditar piamente na materialização de coisas, no fabricar coisas. Mas, por isso, quem está fora do discurso de construções materiais, tem grande chance de se entediar, de se descolar demais das coisas, de sair demais das práticas. E isso eu também acho bobagem, ficar na negatividade, na não-identificação total com as coisas. Acho bobagem esse ir voluntariamente para uma espécie de loucura, fuga esvaziada (outras loucuras são vitais). Então a sacada é rir, rir muito, jogar esse jogo pelo prazer de jogar, e pronto. A alma... Digo apenas que penso na alma, penso nela, busco senti-la, examinar esse sopro, deixá-lo ao frescor de algo muito vivo, essa coisa luminosa fulgurante que nos difere de um cadáver.


Renata Huber: Quem sabe assim: o sopro que faz haver alguma coisa, em vez de nada. Digamos que a vida é aquilo que é, como deus é aquele que é. Se explicar a coisa foge, então, é melhor ficar com o perfume e dizer flor, pássaro, ponte, a vida viva, enfim. Tudo muito simples, mas afinal, porque não me mato? Porque escolho não o fazer e sinto que essa é uma escolha da vida, em mim. Se a vida escolhe viver-me, é algo pensante, ou seja, há um logos que é vida, deus? É melhor acreditar que sim, brincar seriamente com isso de haver deus, alma, verbo sacro, espírito santo. Você perguntou da alma e eu pergunto: cachorro late? o que é cachorro pra você? No fundo a pergunta é a mesma, é sempre uma pergunta pelo sentido, pela vida, mas nem sempre estamos na vida e isso é sério. Estar ou não estar deveria ser a questão, uma questão de lugar, insisto, mais ou menos como dizer ok, você fala, late, mas de onde você está falando? A conversa vai longe, sim, e por aí, digo, por onde ninguém sabe, quem sabe a alma seja o cão, Orpheu, etc, aquilo que escolhemos no caminho que ela seja. O que não dá é aquela coisa de abraçar alguma coisa porque alguém, em algum lugar, disse ser a Verdade, enquanto dentro, ali, o que seria a experiência, evapora ou sei lá.



5) Qual a importância da natureza, da observação da natureza nos seus trabalhos poéticos?


Roberta Ferraz - é imensa, se chamamos de ‘natureza’ o fluxo energético dos elementos e sua interação com nossos corpos e nossos elementos, que afinal, são os mesmos, em dosagens diferentes, com direções particulares. Acho que essa contemplação do fluxo é uma fonte inesgotável de prazer e bem-aventurança. A gente esquece-se disso, não é? Tão claro, ofertado. É bom dissolver a imagem parada, a falsa imagem estática, das coisas. Acho que a ideia de natureza que faço vai por aí, pelo ato de trazer movimento e êxtase, de maneira tão delicada e simples, à experiência de que estamos vivos.


Renata Huber: A correspondência entres os corpos, as cartas trocadas e os signos embaralhados, é algo que me encanta. O sangue é rio, a pedra é osso, tudo é um. O sentimento disso me guia às vezes, e às vezes me perco, olho meu gato na janela e me sinto presa, como se ele, em mim, tivesse perdido as garras. Daí vem pássaro, borboleta, e vejo que não, o instinto não se perde e as garras voltam. O homem é um ser estranho, um estranho na natureza, uma espécie de exilado que nunca perde o vínculo, o instinto, essa força que lhe chama do corpo para o corpo. O corpo é a natureza, e nesse sentido, observar o corpo, escrevê-lo, esculpi-lo, dançá-lo, é sempre um trabalho poético. Acho que a poesia des-naturada é um contrasenso, já que ela nasce no corpo e o corpo é fruto da natureza. Mesmo a poesia, digamos, mais cerebral, é uma expressão da natureza. Há uma cisão corpo e mente, corpo e alma, ok, "n" modos de pensar a reversão das "idéias" e dizer, por exemplo, que o cérebro é um grande sexo, um órgão intuitivo com uma vulva pineal sinalizando conjunções. (rs) Daí entendo porque Platão nos expulsou, a nós, poetas. Agora, voltando à sua pergunta, digo que sim, meu trabalho poético vai por aí, por essa ciranda de signos in-corporados na experiência, onde o conceito de experiência, ligado à Natureza, se desdobra em ato, visão poética do mundo.


Érica Zíngano: Minha vida seria mais feliz se eu tivesse um cachorro, um cachorro bem alegre perto de mim, mas em termos práticos, isso é impossível. Acho uma crueldade um cachorro encerrado num quadrado de apartamento. Por isso, a palavra natureza, assim como a palavra cachorro são escassas nos poemas que escrevo hoje. Pode ser que, com o tempo, tudo mude e a palavra natureza, assim como a palavra cachorro comecem a se escrever, com muita naturalidade, nas páginas que organizo ainda com alguma displicência. Sempre lembro da Llansol repetindo mais ou menos assim, junto com outros que pensaram o mesmo problema, “só que a natureza, meu bem, nunca ninguém a viu”, como se a natureza fosse esse fora, uma exterioridade que mensuramos e nomeamos como natureza, mas que ela mesma, a natureza, não se sabe assim, não se reconhece nesses termos. Independente disso, talvez tenha sim nuances de um litoral que começam a ser desenhadas, mas que ainda é muito recente para que eu consiga falar, porque as paisagens são múltiplas e se misturam, se interpenetram, dentro e fora, quando toda pele é superfície, de dois lados, cidade, maresia, roçando ali, também, nas brechas do contato.



6) Quais são as palavras-chave mais caras ao seus léxicos e trajetórias poéticas? Na opinião de vocês, existe alguma ligação entre o léxico dos poetas contemporâneos e o léxico e o projeto dos poetas românticos, Novalis, Goethe e outros, com que 'tradição' os poetas de hoje dialogam?


Renata Huber: Essa pergunta me traz o poema de Drummond. Trouxeste a chave? A palavra-chave, o abracadabra de cada um, assim entendo, é um segredo, a criação de um segredo que faz parte do caminho. Estou no começo, digo, tenho muito chão pela frente até dizer o abracadabra, dizer, em outras palavras, o que me guia, etc. Acho que toda palavra, que insiste em dar sinal, é reveladora de algo. O lance é estar atento, dentro, com a intuição alerta fisgando o possível, o latente sentido das palavras ao encontro. As tuas outras perguntas, não sei, acho que o diálogo com a tradição esta aí, sempre. Cada poeta dialoga com "n" poetas, viaja no tempo, garimpa aqui e lá o que lhe soa precioso, e segue, escreve o que lhe vem, com ou sem projeto. Projeto, essa palavra, traz o futuro, carrega a idéia de rumo e projeção. Não estamos no tempo do "projeto amarrado", de idéias e valores que norteiem os poetas. Talvez a dispersão, palavra cara ao nosso tempo, seja o sinal de algo novo, de um projeto, ético-estético, pautado em não-projetos, em talvez experiências com desejos de "não-nome", pra sentir até quando. Há um gozo no "até quando", e falo por mim, pra cutucar, levantar as cinzas do disperso e ainda não-nomeado. O que fazer de Goethe, Novalis, e outros, é ler, e esse é um dos planos para o ano novo, ler e transler, alcançar alguma idéia para que o diálogo prossiga.


Érica Zíngano: Talvez exista sim uma noção de fragmento que possa ser partilhada com os românticos, mas até o seu uso seria diferente, porque não remonta mais para a mesma unidade, em razão também desse eu que se escreve em fuga… E que não corre mais para cima, mas para os lados... Além disso, não há como pensar numa tradição única, por mais que tenhamos herdado pedaços da Modernidade, porque acredito que cada um inventa seus antepassados, reescrevendo-os a seu modo, seu modo de continuar escrevendo, continuando, sobrevivendo ao mundo, escrevendo.


Roberta Ferraz – Varia muito, o léxico, o emblema das palavras-chave... Penso que há um universo léxico para cada experiência que se queira fazer em imagem poética; e cada livro, cada momento, organiza um. Talvez haja uma palavra de(le)itada na terra daquilo que me vem no encontro das dimensões do poema, e ela é “feitiçaria”. E os fios que ela puxa, essa coisa de mulher e sangue, bacias, noite, cabelos, ossos, sagacidade, atuação, ação, transformação, magia, obscuridade, lua, manivelas, silêncio, coisas não ditas, coisas malditas, coisas desditas, esquecimentos, corpo. Isso pode sim dialogar com os românticos, até pressinto às vezes ecos neo-românticos em poéticas daqui e dacolá, hoje em dia. Não vejo problema nenhum nisso. Romântico, mas com o corpo fibroso. Romântico, sim, porque poemas em situação de delírio com o mistério, apaixonados por ele. Mas mais que romântico. Aberto, absorto, solto – livre de pedagogias. Amante. Tem gente que não gosta, que acha abusivo, elitista, anacrônico esse lugar amalgamado à ideia de ‘romântico’. A mim não me incomoda. Muitas outras coisas me incomodam, isso não. Gosto desse caminho torto, exagerado, convulsivo, ingênuo, etc. que desemboca no Romantismo, no Simbolismo, no Decadentismo, no Surrealismo. Tirando os ismos daí, que são retratos parados dos textos (portanto, retratos ‘falsos’), quem é que não é contemporâneo de quem? Como é que se mede a contemporaneidade de qualquer coisa?


7) Gostaria que vocês selecionassem três poemas que estão no livro e fizessem um breve comentário sobre eles:



Roberta Ferraz – Seleciono esse: cadáver XVI. Um dos inúmeros cadavre exquis que fizemos e que nos levou à experiência de uma potência sem nome, nos levou a um lugar que, hoje, eu chamo, de maneira lívida, de poesia:


cadáver XVI






voltar


à casa ao corpo húmus da cidade


ainda ontem nos despimos, era outro


o nosso rosto, não posso apenas


você


chorou o pai, eu disse - válvula


duas máscaras mortuárias nos aguardam lá fora


o seio como ostra a abrir-se e eu sentia


as muralhas de suas costas nas algas da manhã


pude desmontar a hérnia de seus versos repetidos


eram forma depois essência


mas morrer para o brilho obtuso fez da palavra


uma viragem


esta casa diz-me tanto


os fragmentos quando velhos


colheremos, as papoulas caçadas nos advérbios


local de contraste na páginas


- estamos prontas para começar, a queimar?


temo enlouquecida que os braços sonoros


seus para sempre perdidos na miragem dos faróis


corroessem a praia, de mim


o avesso da imagem


não queria a ausência


seguimos sem saber aonde ir





Érica Zíngano: Deixo a suspensão de um desses trechos que atravessam um poema e outro, na composição do livro, isso que chamamos, todas juntas, escrevendo juntas, de intercessões:



isso não é uma confissão


isso não é lamurioso


isso não é nostálgico


– isso é uma carta


de alforria





Renata Huber: Faço um arranjo, outro, seguindo o “espírito” do livro, feito assim, de alguns retalhos, fragmentos:



Uma linha / do outro lado / a teia tênue / dos quadris / um a um no fio da vértebra / do que esfarelamos / dizer / as paredes derrocadas / camadas / tudo o que você destrói / assediando os oráculos / sussurrando o susto / essa levitação do pó / diante aquilo que transcende / quando enroscada / fantasma de alguma mãe / de uma infância / em guilhotinas / próximo à carniça



E por aí vamos...

Nota: Para maiores informações sobre o livro acessem o link: http://fiofendafalesia.blogspot.com/

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