quarta-feira, 29 de março de 2017



Por Dri Aleixo


Também neste romance, a exemplo dos primeiros que escreveu, a prosa de Manoel Herzog vem ricamente vestida de sátira, filosofia e metalinguagem. Em "CBA", Herzog tinha como espaço uma indústria santista, em "O Evangelista" seu foco era o forum e a vida suspeita de juízes e advogados, agora, neste romance, sua seara são os psicólogos corporativistas. 

Sérgio é o narrador-personagem que conta sua própria decadência. Falando numa psicologia de resultados, esse psicólogo carioca só se move por um resultado: o benefício próprio. Misógino, preconceituoso e violento, ele é o novo-velho-homem refletindo o pensamento massificador de grande parcela da sociedade.

Ao nos contar sua história ele deixa antever seus traumas da infância, a relação conflituosa e mal resolvida com a mãe, os casamentos fracassados, seu pensamento machista e atitudes violentas que vitimam principalmente, seus filhos, parceiras e ex-mulheres.

“Os malditos, os sardônicos, os sarcásticos supositórios de glicerina de minha mãe. Minha mãe que me engambelava tão bem, me apaixonava, levava aos píncaros do amor filial, inebriado do cheiro de seus peitos, de seu regaço, de seu colo pra, inopinadamente, do nada, me sovar a bunda de chinelo, ou me encostar na parede com acusações absurdas e me arrancar confissões do que não fiz...”

Ao empreender sua escalada profissional, ele deixa o subúrbio pra viver na zona Sul, ganha dinheiro, aventura-se numa empreendera e duvidosa literatura de autoajuda-sempre amparado por um ghost writer-, professa uma fé mesquinha, luta MMA,e decai
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E a cada palavra ou excesso dessa, tentativa de tocar o real, como observou Lacan, Sérgio resseca-se por dentro.

“Do qual já falo”, falo de falar ou falo de órgão sexual, o meu,in casu, tão propenso a B. em felizes tempos. Que se desculpe a divagação,foi apenas uma anotação lacaniana. Palavra,significante mestre.”

Temos então parte crucial do enredo: O intestino de Sérgio, sempre apreendendo seus malogros, faz parte da alegoria da história e a ele é dado um lugar de personagem na trama.  Beatriz, ou simplesmente B., amante bem mais velha,que aparece desde as primeiras páginas é associada à figura materna.  Já ao padrasto Diógenes fica destinado o papel de homem livre, assim como o personagem filosófico e a temática do cão, o substituto de seu genitor o desafia, apresentando um intestino livre de amarras e ressecamentos. 

A metalinguagem aparece durante todo o enredo, principalmente quando o protagonista reflete sua fala sempre em choque com a de seu Ghost Writer, porém na parte final do livro ressurge de forma rica e peculiar. Sérgio vai ao Espírito Santo e relata o encontro com literatos; entusiasmado com a presença de Caê Guimarâes, Erre Amaral, Waldo Motta, Wladimir Casé , Saulo Ribeiro e outros ele finalmente sente-se bem, faz uma incursão pelos bares da capital e decide enfim, pela colonoscopia.

De volta ao Rio e sob o efeito da anestesia, ele é guiado por Waldus ao Hades e, entre rubis, gnomos e virgens de Botticelli narra alegoricamente seu desfecho; tão rico, tão trágico.

“Não te iludas com o que vês, Saturno é insidioso, faz o visitante do Hades pegar gosto e querer ficar. Por isso te acompanho, pra que as ciladas não te impeçam a volta segura.”


DEC(AD)ÊNCIA
Editora Patuá, 2016
398 páginas


Adri Aleixo é poeta e professora de Literatura

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