terça-feira, 30 de maio de 2017



Por Manoel Herzog

Um dos aspectos que olho com nostalgia e qualquer idealismo, na doutrina brâmane, é a experiência dos sannyasis, aqueles homens maduros, por volta dos 50, que largam a vida mundana e vão viver reclusos na floresta, cultivar a sabedoria. Trazendo pro mundo ocidental, é a admiração com que um estudioso olha pra vida de Montaigne, o nobre erudito que, belo dia, recolheu à sua chácara e pôs-se a escrever páginas eternas, livre das convenções que poderiam impedir um homem de remar contra a maré. Na virada do meio século (onde me encontro) estes paradigmas insistem em lampejar. Pois foi nesta linha de entendimento que passei pela leitura do volume de contos A Morte é uma Péssima Invenção de Deus, de Murilo Mendes, não o homônimo saudoso poeta, mas meu amigo radicado no extremo ocidente matogrossense, um “cronista do sertão”, como se intitula, vivo e afiado.

Tem ganhado força a expressão, um tanto clichê, “lugar de fala”. Murilo, juiz federal designado para a magistratura naquele rincão, não nos oferece uma visão regionalista, antes, sua literatura é extremamente cosmopolita.  Os quinze contos do livro transitam por temas como a Bossa Nova, Borges, a Floripa do estado natal do autor, o Rio de Janeiro, nossa eterna capital cultural, Machado de Assis. À exceção do capítulo “Curtas”, onde agregou narrativas de menor fôlego, os contos da coletânea são extensos, à moda tchekoviana, importando mais enquanto mosaico narrativo que como solução rápida. Contradiz aquele postulado, do qual também não sou um entusiasta, que o conto deve vencer por nocaute, ser lido de uma assentada etc. 

Os dois que mais me agradaram encontram-se no capítulo “Era uma vez”: Toca do Vinicus, ambientado no RJ, é uma deliciosa narrativa que tem por pano de fundo a Bossa Nova, um dos nossos grandes feitos civilizatórios – a despeito do próprio autor, amargamente, fora da Literatura negar que o Brasil tenha influído na história da Humanidade. Neste conto, entre didático e lírico, é apresentada uma hipótese de amor homoerótico e platônico do compositor Newton Mendonça pelo jovem Tom Jobim. Há também o magistral O Ser e o nada, ambientado numa Florianópolis de trinta anos atrás, contando as agruras de um cronista esportivo cujo casamento vive uma crise, digamos, existencial. E existencial à moda mais sartreana possível, para um narrador obtuso frente às questões do existencialismo (é um cronista esportivo) casado com uma mulher intelectualizada. De uma beleza triste, o conto explora as dificuldades de relacionamento tantas vezes, passado o furor da atração sexual, enganchadas nos espinhos da ideologia.

Literatura de exílio é quase um pleonasmo: para escrever há que se exilar. Feito o cão exilado do primeiro conto, feito Montaigne, feito os sábios hisdus que se embrenham na mata, os contos deste A morte é uma péssima invenção de Deus são experiência de isolamento. Mas, ao contrário dos hindus, que se recolhem à busca da iluminação, a literatura de Mendes nos apresenta a crueza da dúvida existencial, mística, um mundo de ausência de Deus, um ser que, se existe, é péssimo inventor.

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