“duelo a garrotazos” (1819-1823), de Francisco de Goya
ZONA DE LEITURA
à memória de José Fragoso da Fonseca, o Capilé, que queria seu
nome e sua história contada em livro.
nome e sua história contada em livro.
Pelego, cobertor de pano
curto, ajudante de capataz. Furingo. Mariquinhas. Cagoeta. Perto de assujeitado
assim é que digo que Capilé é bem mais homem, ele, Capilé, desmunhecado, mulherzinha,
viadão. Capilé é que merece nossos respeitos. Apronta as suas, mas é bola,
posição goleiro, defensor do time da rua, nosso considerado. Pró-bairro,
sempre. Já esse Amuleta... Duma figa, esse Amuleta! E se duvidar ainda há de me
chegar embatonado de risinho frouxo nas fuças, como se nada de nadica houvesse.
Não à toa o apelido: Amuleta. Diz-que por causa de suas sortes, em uma ou outra
jogatina pelo mundo, nas sinucas, dominós, carteados. De penduricalho, carrega cordão
no caído do peito, camisa entreaberta, pedregulho brilhoso a ostentar a fama. Amuleta,
o que empina a própria alcunha a saltear a partir do pescoço, para baixo. Troço
de quem coxeia da honradez de homem digno, isso sim. Um desarmoniado, vaso
ruim, zé-furreco. Bica enguiçada da qual só jorra água imunda.
Amuleta, que se propaga
como cria cá da rua do Propósito. Logo ele, tão sem os seus, nunca postos às
claras, conforme os costumes dos arredores, de malta honesta. Cascateiro! Veio
é dos cafundós! Se marcou visita eu não manquitolo do encontramento. Te espero no
Talma e logo mais é agora. Disputo a rinha, se galo vier e houver, vou na
disposição. Cisco em meu próprio terreiro. Sem nó. Quer acertar os ponteiros?
Meu relógio não perdeu o pulso, ginga belamente, no sentido que a hora pede.
Amuleta chegou atrasado. E nem é daqui da região, nem que quisesse, conquanto
mentisse. Tranquilidade, vamos resolver a pendenga, com ou sem bordoada. De
boa, na moral, vem na fé. Sujeito homem, ante o medo, nem de prece carece, vai
no valenteio.
Da história desse
cabruncho, pouco se sabe, o que ele dá se aceita. Povo faz de desconfiado mas se
fia té demais, nuns tais. Eu que vejo sombra, tá bem, vamolá. Só que, em
matéria de corneta, não presto para desafino. Assunto, assopro e, no que
assimilo, aí que abro a gogó pra grita. Confirmado o palpite certeiro no
bafúncio, hora de apontar meu desacordo. Pondero, com tino, miro a arma, atiro.
Assumo com sanha o besuntado, parto pra dentro, detalho. Denuncio, não condeno.
Pronuncio, com fala ausente de meias frases: deste lambe-botas chamado Amuleta,
o que posso referir, na seguridade mais segura, é que ele tá é à venda! E quem
pender pra ele também vai ter que rodar. Ou roda a categoria toda. E tenho
dito. Pé no rabo desse zumbaieiro, marujada! Quebra a guia dele.
Pé no rabo. “Paciência,
Comuna!”, os cais me pedem. Paciência. Comuna. Eu, que nunca cheirei pó de
livro do tal de Cal! É Cal que falam, Cal Marques. Agora... Comuna por que, companheirada?!
“Paciência, Comuna! Esse Comuna tá é doido...” E a diretoria goza. Goza, goza
aí. Depois se vê, bando de trouxa! Na assembleia o couro estica, batera se
forma, turba espoca. No guizo do ganzá se serve um dito cujo salafrário, de
bandeja pra refeição dos que não toleram um bunda-suja. Amuleta cai, Comuna
fica. Comuna da Harmonia, que ainda calha com meus talentos à viola. Valha um
dó, menor ou maior. Eu toco. Comuna da Harmonia. Assim, tanto melhor. Tamo
junto e pranto curto de poeta é sinto-muito.
A vida no Porto não
reporta só a luta e a lida não. Tem muita lira, roda, glosa. Quem bota sacolão
no costeado também sacode a mão no tamborim, no surdo, num cavaco. Vizinhança,
essa, é de brinca e amizade. Tá pra festa e pra festim. O laço dura até nos
derradeiros de um conflito. Morre-se abraçado. No dia a dia, há boa troca,
farta ajuda. Quem não escreve, pede pro que para isso deu e serve. Quem não lê,
enxerga. Só não tem espaço é pra safado.
O Talma é uma sociedade
dramática, como chamam. Um clube de teatro, aqui da cena da Harmonia. Pra onde
vem gente de toda a Saúde, das margeanças desse onde em que atracam os navios
tudo, e povo da Senador Pompeu, Morro do Pinto, Camerino, Leandro Martins, São
Cristóvão... Frequentadores da Central, gente-bem, artistalhada bacana, de
fita. Mó riqueza, nos dons. Todo esse movimento faz crer que a cidade é nossa.
No Talma rolam também uns dados, uns joguinhos... De azar, mas também de sorte.
Fortuna, é jurado e juramentado que não se faz, imagina! Não é lugar para tanta
zanga, pelo contrário. Povaréu do ao-redor da praça quer é fandango, pagode,
bailão, quermesse. Aglomeramento. E bonde na porta de casa, ora se não! Fino
trato do poderio? Só um agrado. Que vai até certo ponto, claro. Sempre digo, da
minha falastrice de Comuna: se a gente não se organiza, o que nos acontece? Nos
passam pra trás, de solapada, se esquecem.
Tinha que ver isso aqui
antes do sindicato! Estiva, batente facilitado nunca que foi nem será. Lombo
pra transporte de carga pesada era o da escravaria. A chegada do salário não mudou
muito, de imediato, a nossa condição não. Nego ficou foi perdido, barata-voa,
perna solta, barco sem porto. Vagabundeou-se, à toda. Hoje, o sindicato
controla. Dá trabalho. Todo mundo trabalha. Até cabra franzino se emprega, no
esquema dos rodízios. Tem só que se aguentar no próprio dorso, contra o vento. Além
de não ser levado pela baba larga da saliva dos contratados, que solicitam, na
falsa humildade: “Fura lá essa greve, marujo...”
Pois então, aí que
quero chegar. Amuleta tá mancando direto sua lábia lá com os escriturados. E
com livre acesso de convencimento junto aos cais. A última greve danou tudo. Prejudicou,
entregou pra eles. A coisa anda
esquisita. Amuleta uniu-se de conluio para com a chefatura. Tese que provo e
reprovo. Trapiche continua sindicalizando? Sim, mas tá estranho, tudo muito
estranho. Descobri gente do Amuleta, pessoas de proximidades bem próximas dele,
mesmo, de pose nas escrivaturas dos armazéns, com posto de mandão, empatronado,
submetido. De entrão. Delfino, Bodega, Felício e outros diretores pipocam,
ensurdam, esquivam o memoriado: “Não lembro desses não, Comuna...” “Vai ver
sempre estiveram no mesmo lugar.” “Você tá é de cisma, melhor deixar quieto...”
Mas eu me lembro bem, guardo rosto de sacana como ninguém. Recorto uma cara
dura com todos os seus contornos, colo na pele da memória. Manjo bem o tipo,
que esconde os dentes quando sorri, que olha murcho, faz de bobo, pisa o pé sem
plantar rastro, corcoveia e manobra, mantendo na guarda do silêncio suas
intenções de dentro. Estas, só se revelam quando o sol já se pôs.
Agora, lembrança tem
coisa de apagar o que não é de conforto lembrar. Já lembrança de Comuna da
Harmonia não se aflige não. Ela lembra. Amuleta, elogiador número um de
governo, parceirinho de manda-chuva, chupa-bala de ricão, lacaio de carcará, entregador
de pé-lascado: tô no seu encalço, à sua espera. Daqui não me pelo. Nesse
riscado de chão do Talma é que vamos nos resolver. Ou não. Percebo o clima de
armação. Mas quem foge da raia é peixe-vilão. Pode vir, malandreco.
Não sou malandro, porém
me ajeito, de sapato ou de tamanco. Descendo de Pata Preta, Manduca, Russo,
Amendoim. Capoeiristas, arrumadores, revira-barracas, não-vacinados,
desobedecidos, avançados. Republicanos. Ou anarquistas? Tanto faz, se ainda por
cima me chamam Comuna. Sangue que se derrama, nasce mais pra circular. Só não
se pode perder o viço, o samba, a gana, o frevo, o candomblé. Com batuque e troça
se constrói a casa, também. Foi das reuniões de divertimento e reza que se
operou muita incomodação dos maiorá, dos linho-puro, chibateiro pálido, fracote
endinheirado. Isso tudo para nós poder subir um tiquinho, fazer uma graça.
Vai entardecer. Hoje
tinha furdunço da turma do bloco Coração das Meninas. Nossa coqueluche.
Lindeza. Que rir, com Capilé – há que se eleger de rainha, a bandida! Cocota
Chique, senhora sua mãe, é cozinheira de mão-cheia. Vai ter torneio de prato da
tiarada, ah se não vai! Mas Cocota Chique é imbatível, ninguém manda de volta para
a panela seu cozido, sua dobradinha, sua feijoada, sua bobó. Saúde apita é na
Praça da Harmonia. Minha localidade, porto, morada. Orgulho temos, porém sem
vaidades, tampouco hipocrisia. “Nós temos flores, cheiros e cores/ Pra passear
nós pegamos a Ponte dos Amores...”, diz um verso brejeiro, antigo, composto por
uma de nossas meninas do bloco. Falam
em modernidade. Mas tamos um tantão à frente deles. Semente podre como Amuleta não vinga, não. Sufoca, por
debaixo da terra em que pretendeu germinar seu fuzuê de intriga, sua viga de
maldade, desdita sem fim.
Amuleta chegou. Sinto
seus passos, a batida do seu caminhar. Essa cadência de quem atropela, bem
devagar e ritmado. Como se não fizesse doer. Vou descer, mas não vou cair.
Comuna que é comuna não se desguarnece jamais, do que lhe é próprio, de si. Ficam
esses anotados como estão, para a história continuar a ser contada, no depois. Harmonia
não se compra, nem na praça nem na rua. No mais, deixa a gira girar.
* Conto publicado
originalmente na coletânea “Porto do Rio do início ao fim” (Rovelle, 2012).
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