ZONA
DE LEITURA
Por Manoel Herzog
Por Manoel Herzog
Durante
a guerra de Troia Heitor, general e filho do rei, matou Patroclo, o
amigo-amante de Aquiles. Tomado da dor da perda, o herói épico pelejou com
determinação até subjugar o exército inimigo e matar Heitor. Não satisfeito de
só matar, amarrou o corpo aos cavalos de sua tropa e ficou esculachando,
arrastando o defunto na areia durante vários dias, frente ao inimigo sitiado, e
ao rei de Tróia, Príamo, que assistia inerme o filho ser vilipendiado pela ira
daquela viúva insana que Aquiles se tornara.
Rapaz,
viúva é bicho brabo. Lembro de mainha, nos tempos que pai se foi, chorou,
xingou, blasfemou e tudo, até contra Nosso Senhor. Eu falava, Mainha, se quiete,
Deus não se agrada, e nada, ela xingava, desaforava. Depois serenou.
Agora,
mangar de viúva não mango não. Tem que respeitar, sua dor é a dor de todos nós.
Todos temos um calcanhar.
Homero
era poeta sabido demais, foi inventor das duas famílias de heróis que
conhecemos, 1) o semideus e 2) o homem turbinado. Aquiles e Ulisses. Jesus
Cristo e os Santos. Superman e Batman. Hércules e Prometeu.
A
origem de tudo está num mito filho do Deus supremo com uma mortal, criado por
um pai adotivo que aceita o adultério da esposa, um filho meio humano meio
divino que vive seu tempo na terra e realiza trabalhos, pra no fim ser dado em
sacrifício e subir aos céus, indo viver ao lado do pai: Hercules, e qualquer
semelhança não é mera coincidência.
Aquiles,
na Ilíada, poema épico de Homero, é o tal modelo. Filho da deusa Tétis, foi
banhado no rio Estige ficando invulnerável, à exceção do calcanhar por onde se
o segurou. Ulisses, na Odisseia, segundo poema épico de Homero, não tem origem
divina, é humano, e supera as dificuldades com seu talento. É um descendente
remoto de Hercules, mas não tem origem divina direta. Feito os santos do catolicismo,
que não são filhos de Deus que nem Jesus, mas operam milagres.
Importa-nos
aqui falar de Aquiles, filho direto de Hércules na tradição helênica. Aquiles
amava Patroclo (Hércules amava Iolau), e Patroclo foi morto em combate. A Ilíada
é portanto um poema que se volta sobre o tema da ira. O momento culminante da
obra é quando Aquiles mata Heitor e humilha Príamo, seu pai, açoitando o
cadáver do filho. Depois de dias de chacota, acaba por reconhecer a grandeza do
inimigo, toma-se de compaixão e devolve o corpo de Heitor a Príamo, que então
lhe dá sepultura digna. Embora meio divino, Aquiles tem em si o germe da
intolerância, do ódio, da ignorância. Só o sofrimento digno e calado do rei de
troia vai aos poucos o chamando à realidade. Na grandeza que se espera de um
herói, ele reconhece que abusou e devolve o defunto. Sua ira nasce de uma frustração,
do roubo do objeto de seu amor, seu amiguxo Patroclo. Portanto, temos aqui uma
personagem que não dominou suas paixões, caminho por onde o homem comum atinge
o status de herói, ou santo.
Vivemos
coisa parecida hoje. Ficam aí, arrastando um defunto, e já está é fedendo.
Devolva-se, que enterrem pra acabar logo esse luto infame. Movidos por paixão,
direitistas choram a morte de seu general. A esquerda, feito Aquiles, foi lá e
matou, de pirraça. Ganhou-se, o inimigo não merece piedade, mas talvez já se
tenha arrastado demais esse cadáver. Bora consolidar a Grécia que, não
esqueçamos, é um balaio de gato formado de ilhas divergentes entre si, que
precisam, mais do que nunca, se unir em torno de um ideal comum. Só se faz isso
falando a mesma língua, aprenda-se com os gregos. Acima de tudo: nunca se deve
esquecer que todos temos um calcanhar vulnerável do cacete.
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