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Klimt - Mother and Child (1905) |
Marco Aurélio Cremasco
A estrada se faz em reta imensa.
Seria cansativa, caso não fossem as idas e vindas, lançando-me à sensação de
quem flutua. A estrada retira a capa de asfalto e retoma a terra batida da
minha infância. O cheiro ocre de abatedouros de aves cede lugar ao hálito dos
eucaliptos. Vejo os formandos do Ginásio. Param os carros e pedem algum
dinheiro para a formatura. Que nada! Com o dinheiro querem conhecer o mar.
Caminhões de algodão na dobra da curva. As pessoas amontoam-se e apostam.–
Quantas sacas cairão? A curva me diz.– Você está na cidade em que nasceu. Subo
uma quadra e encontro o canto de uma praça. Percorro-a povoada de bancos
fantasmas, que trazem nomes grafados que não mais existem. Roseiras espalhadas
pelo grande jardim. Praça que não era praça, mas o Jardim. Um senhor imenso
passeia por entre as flores.– Não pisem na grama! Não, não piso e vejo o
pórtico da igreja. Entro. À minha esquerda, descansa a imagem do Senhor Morto.
Sombras aparecem, beijam Suas chagas e ali depositam oferendas: velas, flores e
um pacote de Chiclets Adams. Súbito, uma legião de andorinhas sobrevoa-me e
transforma o teto da nave em céu anil e nuvens de barriguinhas brancas. Ao
descer o olhar e ao lançá-lo na direção do altar, deparo-me com meninos em
túnicas vermelhas, com sobrepeliz branca. Haveriam de conquistar a torre da
igreja e atingir o símbolo mais precioso: o sino. Quem poderia badalá-lo às
13h? Antes, porém, escalar a escada que se finda no coro com aquelas paredes
com tijolos à vista, sem reboco. Nos interstícios dos caibros da construção,
ninhos de pombos e a revoada desgovernada daqueles querubins. Ainda assim era
preciso chegar ao sino. Ainda assim necessário pendurar-se na corda e... ir e
vir... ir e vir, para ter a sensação de voar e alcançar as trombetas dos anjos.
Ganhava-se a fúria do padre ao descobrir de qual coroinha partira a ideia de
tocar o sino fora de hora e quem nutria a fome incomensurável por hóstias. Por
aquelas hóstias guardadas em uma caixinha marrom em um dos armários da
sacristia. Todavia, vinho nunca provei. Saio da igreja, dou de frente com o
prédio da prefeitura. Viro-me para a esquerda e sigo uma, duas e no início da
terceira quadra, entro na casa da esquina. O quarto, maior do mundo, cabe o
Maracanã, Morumbi, Fonte Nova, Beira-Rio. Jogo bola. Enfio-me embaixo da cama,
duelo com Durango Kid e viajo em naves de travesseiros para audaciosamente ir
para uma jornada nas estrelas, perdido na vastidão do espaço. A sala abriga tevê
preto-e-branco, coberta com papel celofane multicolorido. Sofá cor de vinho. Nada,
nada se compara à copa com a mesa de fórmica vermelha e à cozinha e da cozinha
ao quintal em que misturo perfumes de mamãe e assim descubro a essência mágica
que existe na memória.– Filho! – escuto. Respondo silencioso, pois esta fala
presa no presente não ecoa no passado. Então busco espelhos em todos os
cômodos. Não me vejo. Os reflexos são de vários que transitaram por aquela
casa. Vários encarcerados em um só, que se caça nos labirintos da memória. O
espelho apenas testemunha garatujas.
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