sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Flávio Viegas Amoreira

“Nada existe realmente a que se possa dar o nome de Arte”. Assim começa aquele que considero o mais importante tratado sobre o que seria Arte, escrito pelo mestre inglês Ernst Gombrich. O ofício de um artista é uma Fé laica, uma ligação direta com a sensação e intelecção do mundo: sensibilidade aguçada e habilidade pensante no ato da elaboração do que pela Alma é exigido. Assim sempre entendi relação da Obra de Paulo Consentino e daí minha sincera admiração: ele retrata sem mimetizar, reinventa seus universos íntimos: tem uma necessidade visceral, contundente, diria que epidérmica de fixar na fisicalidade da tela, do mural ou painel a experiência dum olhar, a fugacidade de uma paisagem, o ângulo cambiante de uma perspectiva.


Vila Belmiro

Ele pinta como vive: transpõem seu cosmo lúdico e a radicalidade telúrica com sua geografia emocional em pinceladas já gozozamente características. Com seu cromatismo e alinhavado aparentemente aleatórios, pelo conteúdo e pela forma de intencional exuberância tropical, é o mais representativo expoente plástico daquilo que denomino “sentimento atlântico do mundo”.

Pontilhões, ancoradouros, os canais santenses tonalizados feito cortes urbanos, a urgência do horizonte alongando-se do cais ao mar profundo esboçada em sua nervosa tessitura: ele refaz essa costa mítica com luminosidade figurativa como a criatura que primeiro se encanta com a gênese cósmica ou alumbramento permanente com nossa arquitetura. Paulo vai além e amalgama gêneros: figurativismo lírico, abstração convergindo para o real tonalizado, “pop-art” decorativa sem nenhum temor de catalogado comercial: não existe mais arte de massa na era do estilhaço de todas teorias ortodoxas: ele não mimetiza, enfatizo, ele se apropria do cotidiano e oferece à fruição, e não simples consumo, um estádio apinhado quimericamente ou um cardume de peixes na baía reentrante ao estuário envolvente.

Não se distingue o conceitual do experimento: a simples necessidade de se expressar artisticamente é ato transgressivo radical numa sociedade utilitarista e avessa a poesia. Óbvio notar toda poeticidade na linguagem projetada em suportes variados criados a partir do lance de cores e justaposições de traços em Paulo Consentino. Ele projeta sinestesicamente todo nosso entorno: seus quadros tem sabor tórrido da praia num fim de tarde ou túmido na evanescência do nosso vento noroeste impregnando bromélias com sabor torrencial de maresia.

Quando me deparo com um Consentino, “sinto Santos”, vibro com o “Peixe”, dou socos ao ar como um Pelé das letras saudando a mesma paixão compartilhada por esse litoral paulista de exótica simetria no caos alagadiço de sua topografia: sua trajetória é do artista “condenado” ao nosso cosmopolitismo de quem se abre e recebe o globo num porto que reflete todas latitudes: setas, arabescos, o “topos” esquadrinhado lançados a um improvável infinito que não se fecha.


Elano

Opulência, excesso hirperbólico, sua imagética não mais se amolda ao quadrado-tela: é adaptável ao cubo! aos objetos de consumo, ao laminado de carros, arte pública saudando nosso Olimpo futebolístico e customização estética do que seria sem seu maneirismo pós-moderno o cotidiano banalizado. Imagino pranchas, peças de veraneio, alhambrados ou novas marcas de refrigerantes santisticamente “consentinizadas”.

Virtuoso nos retratos, é na paisagem que se supera: subindo a serra, seus trabalhos sobre a “Paulicéia Desvairada” são tão estonteantes quanto às marinhas polifônicas, caleidoscópicas, “bricolagens” a partir desse cenário onde o mar se geometriza em orgia gráfica com a terra.

Inspiração, destreza, penso que mais que isso: explosão de entusiasmo retida com enorme esforço físico: seu ateliê, sua técnica , sua rubrica revelam uma intensidade de labor, de estiva , dum operário tecendo com sutileza a percepção intuída e sua capacidade ímpar de comunicação e reprodutibilidade artística e emocionais.

Necessário lembrar que “entusiasmo” em grego é “encher-se de Deus”: Paulo Consentino não se repete porque sua intencionalidade é anímica: toda razão vem da emocionalidade de sua mirada: incorpora o divino gestando um verdadeiro mais real: o paralelo delirado pela composição não-casual de novas esferas do olhar, reverberações de matizes precisos que alumiam todo nosso desconcerto perceptivo. Pela agilidade táctil, foi rápida sua adaptação ao mundo virtual, à videoesfera: são apropriadíssimos seus jogos labirínticos e embaralhos à “cyber-arte”: o número de acessos aos “youtubes” levam nossa paisagem e esporte em dobras e torneios rítmicos já reconhecidamente do santista Paulo Consentino.

Novas mídias, novos recheios à nossa visualidade: descendendo da estirpe de Lichtenstein ou De Kooning, sua Obra nos oferta obra com energia que solicita nossa interpretação e deleite , sem pretensões "vanguardosos", perfazendo um ´mix´ de tendências, instaurando um estilo não preocupado com o originalidade, mas com autenticidade. O quê de original pode ser proposto na era da saturação? Consentino é legítimo com seu instrumental e cenário privilegiado: onde encontraria tamanha plasticidade aqui onde as montanhas descem do planalto abraçando o Mar...

A paisagística se soma o lúdico: literalmente lúdico.

O futebol é sua logomarca quântica: ele se utiliza da Arte driblando todos preconceitos que estupidamente existiam sobre a elevação do esporte de massa ao “status” de interação estética com a Existência: o passe, o campo de partida, a figura do atleta em sua precariedade e vibrátil disposição para a disputa como metáfora da Vida, a peleja futebolística refazendo a trajetória humana como torneio arbitrado da Existência. Por que não reencetar a marcha de Fídias e Xenofonte? Tendo toda solar musculatura transmoderna com a legendária musculatura de Pelé numa jogada tão imponderável quanto reproduzir plasticamente um espocar na rede que tem a fúria dum átimo de segundo: um milésimo gol do Rei que corresponde ao milímetro que dá nexo e impacto no “portrait” de Consentino.

Sombreados, fragmentos, relevos, simulacros do visível aparente, similitudes com céu e aproximação pictórica com aurora ou crepúsculo; craques dispostos como para batalha de gladiadores: toda atmosfera de Santos e do "Peixe", fazem-se elementos destacados do burburinho do Tempo que escorre: Paulo Consentino dá concreção plástica ‘a essas “forças da natureza”. Identifico em Paulo, mesmo temperamento que exijo e que torna peculiar minha escritura: a ligação passional, quase erótica com a Literatura; mesma boa "passionalidade" que ele exterioriza: um trabalho de Consentino irrompe, não sereniza: inquieta para nos aguçar ao vislumbre e desejo: Arte como resistência ao ceticismo que nos espreita, abate, mas que persistimos como quem fatura um campeonato suado por página ou tela.

Falando em Pelé, não poderia deixar por menos ao citar Leonardo da Vinci: ícones do milênio... “O peso deseja uma só linha, e a força, infinitas”. Recorro ao renascentista para refletir sobre a série “Futebol Arte”: A leveza se adensa e prorrompe nos traçados solares de Consentino: enfatizo o termo “traçado-setas” que se desdobram, convertem ao eixo emotivo que dá argumento ao quadro e se infinitiza como o rastro dum navio de imensurável calado.


Clodoaldo


Seu desenho é técnica peculiaríssima: existe nos esboços uma permanência intrínseca que só a perícia dum artilheiro feroz por vitória conduz do meio-de-campo ao rés certeiro por dentre as traves. O fenômeno expressivo tem na força e forma que a representa energia efusiva, transbordamento: simetrias múltiplas: microcosmos alçando a luz por contrastes dum “ritmo” ótico que denuncia a grandeza de seu olhar.

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