Alessandro Atanes, para o PortoGente
As leituras são cumulativas, isso é claro, e muitas vezes se interpenetram, o que é muito comum quando se lê alguns livros ao mesmo tempo. É esse encadeamento de leituras, que remete ao primeiro livro escrito e que aponta para todos os que ainda serão publicados, que Umberto Eco chamou de enciclopédia pessoal e Jorge Luis Borges de a biblioteca infinita.
E não é que em uma conjunção de lançamento editorial, escolha pessoal, fila de leitura, esses dois autores, que costumo revisitar, se cruzaram em minhas leituras nesta última semana?
Explico: comecei a ler no mês passado Baudolino, romance de Eco que tinha em casa há alguns meses. A história se passa em plena Idade Média, um pouco depois do ano 1000, quando viveu a personagem que nome ao título e que é o padroeiro da cidade natal do escritor italiano, Alexandria. No livro, Baudolino é um camponês que aos 15 anos acaba adotado por Frederico I, imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Uns vinte anos depois, em uma viagem em que o protagonista e um grupo de amigos escoltam o imperador, este morre em um castelo, e os acompanhantes, após darem conta do sumiço de uma relíquia que estava sob a posse de Frederico, acabam por desconfiar da possibilidade dele ter sido envenenado. Mas como, se ele havia trancado o quarto por dentro?
Uma coisa era certa, alguém roubara o Greal [forma anterior à grafia Graal], e daí a pensar que quem o tivesse roubado era o mesmo que de alguma forma matara Frederico, era um pulo. Por mais convincente que fosse o Poeta, dizendo que Frederico podia ter morrido por si só, e que depois um de nós se aproveitara para pegar o Greal, ninguém mais queria acreditar nisso. Meus amigos, acalmava-nos Rabbi Solomon, a humana loucura imaginou crimes atrozes, depois de Caim, mas nenhuma mente humana jamais foi tão tortuosa para imaginar um crime num quarto fechado.
E aí Eco, como ele mesmo diz em seus textos críticos, dá uma piscadela ao leitor. A piscadela está justamente nesta última sentença do trecho recolhido do romance – “nenhuma mente humana jamais foi tão tortuosa para imaginar um crime num quarto fechado” – e eu a percebi justamente porque uns dois ou três dias antes de chegar a esse pedaço, já um pouco além da metade do livro, tinha acabado de comprar Sobre a filosofia e outros diálogos, um dos volumes com transcrições das entrevistas que Borges havia concedido em 1984 ao jornalista Osvaldo Ferrari para a Rádio Municipal de Buenos Aires. Já cego há algum tempo e sem poder escrever, o escritor argentino cultivava o diálogo como criação literária, ainda que de espírito ensaístico.
Enfim, logo no segundo diálogo transcrito Ferrari puxa o assunto do conto policial, um dos gêneros preferidos de Borges e, ali, logo após falar da amizade entre Sherlock Holmes e Watson como fio condutor das histórias de Arthur Conan Doyle, ele continua:
E também há temas que se repetem na ficção policial, e um deles seria o que se chama “The locked room mistery” (O mistério do quarto fechado), no qual acontece algo que parece impossível: uma pessoa assassinada dentro de um quarto fechado a chave. E isso foi resolvido de muitas maneiras.
Tão entranhado está o romance policial na vida moderna que qualquer um pode lembrar-se de um filme ou charada que contenha alguma variante do mistério do quarto fechado e, por isso mesmo, damos por algo que sempre existiu.
Mas não é o que ocorre. Ainda que Baudolino tenha sido publicado originalmente em 2000, a história ali contada ocorre praticamente um milênio antes e, por isso, o conto policial com o mistério do quarto fechado ainda não havia sido inventado. Como, então, lidar com esse episódio?
Bem, além de servir ao conjunto de peripécias narradas pelo protagonista, o aparente anacronismo oferece aos leitores de segundo nível (assim Eco descreve os que capturam as piscadelas) uma oportunidade de escrever sobre a história da literatura.
O anacronismo é só aparente por uma simples razão: os assassinatos mais engenhosos sempre ocorreram na história humana, o que não havia no tempo de Baudolino eram condições para que os personagens identificassem no assassinato um modus operandi ou, falando literariamente, um gênero. Sem essa ferramenta, eles não decifram o enigma e, para não serem eles os acusados pelo assassinato pelo exército do imperador que repousava não muito distante dali, Baudolino e seus amigos acabam inventando uma ficção, jogando no rio o corpo de Frederico (que havia anunciado publicamente no dia anterior o desejo de nadar) e forjando um afogamento.
Esse intervalo entre as circunstâncias do assassinato e o repertório “detetivesco” de Baudolino e seus amigos é que consiste na piada, na piscadela. Talvez para alguns essa piscadela seja bem fútil e exibida e, sem o apoio de Borges para outros temas do romance de Eco, eu provavelmente tenha perdido uma série de outras “ironias intertextuais” do livro.
Vale registrar que o próprio Eco, em seu artigo Como escrevo, nos avisa de como o episódio do quarto fechado fez parte da composição de Baudolino desde o início:
Quanto à ideia seminal [para escrever Baudolino], durante pelo menos dois anos eu as tive muitas e se ideias seminais se tem demais é sinal de que não são seminais. De fato, cada qual deu origem não à estrutura geral do romance, mas apenas a situações limitadas a alguns capítulos.
Sobre a primeira ideia nada direi, pois a abandonei – por variadíssimas razões, sobretudo porque não conseguia desenvolvê-la – e talvez a reserve, quem sabe, para um quinto romance. Esta ideia fazia-se acompanhar, no entanto, de uma ideia secundária que, banalmente, pode ser encaixada no topos do homicídio em um cômodo fechado e, como se vê lendo o romance, recuperei o topos para o capítulo da morte de Frederico.
Esta superposição de tempos e referências, mesmo quando captada apenas de esguelha ou com o apoio de outra leitura, é o que faz deliciosa a leitura da ficção de Umberto Eco.
Referências:
Umberto Eco. Baudolino. Tradução Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: BestBolso, 2007.
Jorge Luis Borges e Osvaldo Ferrari. Sobre a filosofia e outros diálogos. Organização e tradução John O’Kuinghttons. São Paulo: Hedra, 2009.
Umberto Eco. Como escrevo. In: Sobre a literatura: ensaios. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2003.
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