Marcelo Ariel
Marcelo Novaes: Ariel, você aprendeu a ler cedo, e usou a escrita e a leitura enquanto tomava conta do teu irmão que delirava. O delírio é uma linguagem deficitária. Dá para entendê-la, até certo ponto. Mas não um menino de cinco ou oito anos. Talvez, “na árvore da linguagem sempre haja um buraco”. A linguagem não dá conta do que somos, nem viabiliza uma comunicação completa, mas “alguma comunicação possível”.
Emily Dickinson padeceu de uma educação tirânica. Seu pai decidia o que ela podia ler, quem seriam seus amigos, etc. Aos vinte anos, a moça decidiu só vestir branco [“a freira de Amherst”] e escrevia, usando a linguagem para apropriar-se de si, num mundo sem graça e sem horizontes. Auto-exilada, a linguagem serviu à Emily, de alguma forma, com ou sem buraco [a árvore lingüística e a ontológica não se superpõem, nem se resumem a um só rizoma...]. E esse uso da linguagem era tão pessoal [tal qual um músico tocando num quarto, para “palpabilizar” suas próprias emoções], que Emily deixou instruções explícitas para sua irmã para queimar seus 1600 poemas escritos. Linguagem [com ou sem buraco] como exercício de apropriação de si mesma.
Tuas leituras devem ter sido teus primeiros amigos. Diante de uma linguagem abstrusa e indecodificável como a de teu irmão, a escolha de dialogar com Emily Dickinson te permitiu dar continuidade a uma escuta inacabada? Como esses textos te ajudaram a lidar com a memória do teu irmão e com os diálogos porventura factíveis, caso ele estivesse vivo?
Marcelo Ariel:Primeiro, não considero o delírio uma linguagem deficitária, existe todo um Topos que se estabelece a partir dos símbolos e imagens dos 'possuídos pelo delírio', os codificadores desse Topos podem ser divisores de águas nos campos da filosofia ( Sócrates e Gurdjieff por exemplo) e Poesia ( Rimbaud e Blake por exemplo).O delírio exige um sofisticadíssimo repertório simbólico para que seja possível sua codificação através da linguagem e não apenas através da linguagem dos símbolos & metáforas, que já são em uma segunda instância, um derivado desse Topos.
Segundo, o "Tomar conta" do meu irmão que era classificado como um esquizofrênico, era no fundo um diálogo silencioso e o estabelecimento no decorrer de 17 anos de convívio de um códice, não apenas do delírio, mas de uma zona silenciosa intermediária onde o poema se tornou o ângelus-mediador entre campos abissais do Ser, estes campos abissais são chamados de "Buraco". Não, minhas leituras não foram meus "primeiros amigos", os livros entram aí como personificações simbólicas desse ângelus, como o ângelus novus de Klee, essa sua abordagem me lembra a desconfiança de Proust e a de Bakhtin em relação à eficácia da análise psicanalítica, quando colocada diante destes campos abissais , sejam eles a loucura, o sofrimento extremo, o delírio ou as visões dos místicos ou dos esquizofrênicos, obviamente, há uma distinção a ser feita aí, mas não uma gradação, existem camadas de significação, acessíveis por causa do Poema e camadas inacessíveis por causa de uma codificação que se apropria dos símbolos, sem contudo ter mergulhado profundamente em suas fontes, que residem fora dos limites dos campos de codificaçãoe catalogação, empíricos ou não.
O diálogo com Emily Dickinson enquanto uma camada desse ângelus mediador, não é de modo algum, uma apropriação, nem uma identificação simbólica.
Marcelo Novaes: Sendo a linguagem em si mesma insuficiente, você se enxerga caminhando para a pintura, para a contemplação, ou dialogando com “n” personagens [seus amigos literário-culturais, inclusive] para preencher a incomunicação arraigada na própria linguagem?
Como você é um cara que trabalhou muito a dramaturgia, o dramaturgo-em-você te faz buscar essa interlocução dialógica de personagem-procurando-personagem, quase ao infinito?
Marcelo Ariel: Vejo a pintura como um movimento silencioso em direção ao silêncio anterior à criação de mundos e universos e desisti do teatro, o poema a meu ver, deveria ocupar o lugar do jogo dialógico do teatro, jogo que depende do conflito, para existir, e essa é sua limitação. O espelho é uma outra limitação, como a atividade egocêntrica que depende dele e de uma internalização, às vezes, até abstrata de seus falsos limites, apenas imagéticos. A dramaturgia do espelho é a simulação do silêncio da pintura, é isso, sem a suavidade profética do movimento de um átomo no universo, esse movimento quase sublime, que era comparado por Chardin à energia do amor, onde ela começa, começa o diálogo e acaba o teatro e a simulação do espelho. Talvez em um mundo futuro, o espelho seja abolido e em seu lugar, reine a imagem telepática.
Marcelo Novaes: Existe uma metafísica subjacente à tua poética, inclusive uma metafísica que vai construindo um glossário próprio: Titanic World, “os raros”, aqueles que podem contemplar o deserto. Essa metafísica tem mais do que um quê de Chuang-Tzu [“não sei se sou a borboleta que me sonha, ou quem sonha a borboleta”], de Herberto Helder [“ Estou deitado no meu poema. Estou universalmente só, deitado e costas, com o nariz que aspira, a boca que emudece”..., diria ele; “É melhor continuar sendo o fantasma de um poema ou em um poema?”, pergunta você] e aforismos metafísicos aos moldes de William Blake [vide seu twitter blues]. Parte da curiosidade do leitor em relação aos teus textos [às vezes, quase-manifestos de um esboço metafísico] não residiria, justamente, na decifração de um “glossário” que você vai trazendo à luz aos poucos? Você traz este glossário à luz para si mesmo, também?
Marcelo Ariel: Sim, como um "livro das correspondências", sonhado anteriormente por Vico, Novalis, Da Vinci e outros mestres, que cito aqui, como 'cartógrafos'. Álias, no meu trabalho a citação entra constantemente como uma cartografia, não apenas de leituras, tampouco, como um aparato demostrativo de erudição e etç... Ela entra como uma cartografia da própria gênese do Poema. Mas este livro, para além de toda e qualquer mistificação, está sendo escrito por todos nós, não é mesmo?
Marcelo Novaes: Em nosso mundo contemporâneo vemos muita saturação sígnica [saturação, simulacros, ou símiles seriam alguns dos males pós-modernos ou de sempre –e não se precisa ler Jean-François Lyotard nem Baudrillard para entender o que falo]. Eu, em meu próprio processo criativo, não me beneficio tanto do ruído, nem tenho apreciado a “estética do estilhaço” e das multi-fragmentações de imagens-vozes que encontro em espetáculos, livros e performances. Considero isso como um vício, viés ou “tique” de nossos dias. Você, em termos culturais e midiáticos, não poderia ser qualificado como um “comedor comedido”, nem vegetariano, mas um cara “onívoro”, já que você lida bem [e parece gostar] das diversas mídias [vídeos, teatro, cinema, literatura]. Sua literatura administra essa voltagem aglutinando esse amontoado de signos e referências [com pertinência, claro], ou você, de vez em quando, sente a nostalgia do “olhar do fotógrafo” que, em vez de amontoar as referências, limpa cenograficamente a cena, para privilegiar “o minimum’, o ângulo, o close?
Marcelo Ariel: Não, não se trata de nenhuma nostalgia, mas de um olhar-moviola. Os diferentes meios de expressão são também a construção do 'livro de correspondências', o universo onírico de cada um, também são construção desse livro, todos os sonhos estão interligados entre si, pelo pensamento autônomo das imagens, que formam um ' continuum' delicadamente ligado à gênese do Poema.
Marcelo Novaes: Você se utiliza do que teus sonhos te apresentam em seus textos? Isso é uso-de-fato, para além do retórico? Por exemplo, você diz coisas como “O clone natalino não é o arquétipo de Cristo (Murilo Mendes ontem no meu sonho)”. Você aprende com os insights oníricos? Poderia [ou gostaria] de explanar, por exemplo, o que o Murilo Mendes onírico acha deste simulacro mal ajambrado de Cristo? E sobre o próprio Cristo, ele te disse algo?
Marcelo Ariel: Cristo não é um Sonho, ele é uma das poucas coisas reais e através da escrita profética dos apóstolos e monges, o essencial foi dito, agora é o tempo da Ação, e não o tempo dos assassinos.
Marcelo Novaes : Você diz o seguinte, Ariel: “um mundo inautêntico ignora sua própria ausência de aura”. Há autenticidade no encontro [ou num encontro] de escritores? O que acha dos encontros musicais numa “jam session”?
Marcelo Ariel: Ótimos, desde que todos toquem e cantem de modo harmônico, mas não absolutamente simétrico, devemos respeitar os universos todos, os universos possuem um eu?
Marcelo Novaes: Tem algo de que você goste da cultura pop de nossos dias, em qualquer de suas vertentes?
Marcelo Ariel: Sim, gosto muito do cinema asiático e do único disco de Yon Lu.
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