segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Alessandro Atanes, para o Porto Literário, do Portogente

Em O mal de Montano (2002), o autor espanhol Enrique Vila-Matas nos traz o diário de um crítico literário doente de literatura, o tal “mal de Montano”, no qual a relação do infectado com os acontecimentos ocorre por meio de citações e construções literárias. Hoje, Porto Literário desembarca um texto infectado pela enfermidade.

Ficção ao quadrado
A escrita de Vila-Matas faz do diário do crítico com inflamação na literatura um encadeamento de analogias entre os fatos da vida do autor do diário e as lembranças literárias que eles lhe trazem, como se como em um espelho que produzisse um duplo literário de cada situação por qual passasse. É o que faz ao apresentar o porto fluvial de Nantes.

Infectado, o autor do diário transforma a mera descrição em uma fábula. No lugar do “Era uma vez...”, Vila-Matas nos dá “Aqui nasceu Júlio Verne”. A passagem inteira segue abaixo, traduzida de uma edição de 2007 (há uma edição em português feita pela Cosac Naify em 2005, com reimpressão de 2010):

Aqui nasceu Júlio Verne.
Não posso dormir, é espantoso, e voltei ao diário, talvez para escrever isto, para dizer que aqui nasceu Júlio Verne e que quando ele era jovem e passeava pelos canais do belo porto fluvial de Nantes e a vista ficava extasiada ante as galés, a casta de armadores e traficantes tinha morrido há tempos e suas riquezas foram dissipadas, ainda que de toda forma um tênue resplendor do antigo brilho durava ainda entre as ruínas da cidade privada e no ar reinava ainda certo perfume colonial.

Como a viagem Nantes não lhe ajudou a se curar, o protagonista, de Barcelona, parte para Valparaíso, Chile, onde tem amigos. A frase inicial (“ao final do século XX...”) nos convoca outra vez à fábula:

Ao final do século XX fui a Valparaíso para pensar na pólvora. Não que fosse precisamente com essa intenção ao porto chileno, mas as circunstâncias fizeram que fosse o último dia do ano, nas mesas ao ar livre do Hotel Brighton, vendo os fogos de artifício que davam adeus ao século, eu acabava tendo a impressão de que o destino havia programado  secretamente que eu viajasse para Valparaíso para pensar na pólvora. E na morte, deve-se tudo dizer. Acima de tudo, pólvora e morte ocuparam meus pensamentos ali na calçada do Brighton enquanto contemplava a água da baía transformada em uma fumegante lâmina negra, bem acompanhado que estava por Margot e Tongoy naquela calçada.

Eu havia ido ao Chile seguindo uma ordem taxativa de Rosa, que estava tão cansada de mim que havia pedido que eu me fosse por uns dias o mais longe possível. Ao Chile, me disse, ao Chile, por exemplo. Lá estava a encantadora Margot Valerí, nossa amiga aviadora. Ela podia me ajudar, disse Rosa. Entre as vantagens de Margot estava a de que não tinha a mínima ideia de literatura, não falava nunca de livros.

A ironia é que neste porto no Pacífico morou um ícone da Literatura, Pablo Neruda, motivo para mais uma nota no diário. Assim, o livro recomeça e recomeça, sempre com algum tipo de era uma vez: “Essa noite, em meu quarto de hotel, vendo no espelho minha triste figura” (Quixote era o cavalheiro de triste figura); “Pedi a Tongoy que se explicasse melhor” ou “Lá fora chove, cai a chuva sobre Nantes e fica-se bem no quarto de hotel”, e recomeça e recomeça...

Epílogo
Vila-Matas esteve em São Paulo em maio, quando participou do 3º Congresso Internacional de Jornalismo Cultural com a conferência a Teoria de Lyon. Conferência é modo de falar, sua fala, assim como a teoria, está completamente inflamada de literatura. Abaixo, o registro da "conferência".

 


Referência:
Enrique Vila-Matas. El mal de Montano. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2007 (1ª ed. 2002).

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