segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Alessandro Atanes, ensaio que reúne dois artigos publicados na coluna Porto Literário

Ranulpho Prata, sem data, arquivo de

Wilma Therezinha Fernandes de Andrade
O médico e escritor Ranulpho Prata (1896-1942) uma vez descreveu sua função de radiologista como a de um "fotógrafo de vísceras" e que preferia escrever a ser médico. Mais do que irônica, a afirmação ganha um caráter melancólico frente ao fato de que Prata [foto] deve ter realizado milhares de consultas, exames e chapas em seus mais de 15 anos de clínica médica dividida entre a Santa Casa, a Beneficência Portuguesa, o ambulatório da Companhia Docas de Santos e seu consultório na Rua Frei Gaspar.

Dessa experiência ele extrai a matéria-prima para compor seu principal romance, Navios Iluminados, publicado pela editora José Olympio em 1937, obra que dá início ao ciclo da literatura de identidade portuária.

I
Nas primeiras décadas do século XX, era comum um carregador de cargas contrair a moléstia após quatro anos de lombação e morrer quatro anos depois. O personagem principal do romance, José Severino de Jesus, não chega à metade deste período médio. Vejamos como isso ocorre no romance.

Migrante do sertão baiano, Severino vem para Santos acreditando que ao trabalhar na estiva conseguirá ajudar sua família em Patrocínio do Coité e ainda juntar algum para casar. Os extraordinários que a turma costuma receber na estiva das cargas além do horário são um atrativo. Só que o dinheiro nunca é bastante e Raimunda casa com outro. Em Santos, depois de receber a carta de rompimento, apaixona-se por Florinda, filha do português dono do chalé em que dividia o aluguel de um quarto com o amigo Felício, também de Patrocínio. Após o casamento, filhos gêmeos, as contas sempre por fechar, um filete de dor no peito e os primeiros acessos de tosse.

E foi após um dia de serviço no armazém frigorífico – 30º graus abaixo de zero lá dentro, calor de verão do lado de fora – com o frio dos congelados queimando-lhe os ombros que, ao deixar o cais, largou o serviço com uma dor no peito esquerdo. Estava “chumbeado”. Era a tuberculose.

A situação piora durante um extraordinário. Destaca-se aqui a descrição do autor Ranulpho Alves, médico de profissão:

Às três horas da manhã, vindo da cantina, onde fora tomar um café quente para espertar, tossiu e tossiu forte, como até ali ainda não o fizera. Subiu-lhe à garganta um líquido morno e doce. E não houve como impedi-la. A golfada, irresistível, projetou-se no chão. Severino arregalou os olhos apavorado. Olhou em torno para ver se não fora observado. E como sentisse vontade de ter novos vômitos, correu para as latrinas do pátio, fechando-se por dentro. Aí, à vontade, botou sangue pra fora a valer. Vendo tanto sangue jorrar-lhe da boca, com o ímpeto e volume das sangrias de boi em Patrocínio, nos dias de feira, Severino aterrou-se, deu de tremer, alagando-se de suor. Se não sentasse, cairia. Tomou a cor do ladrilho branco que cobria as paredes.

Severino ainda trabalha mais alguns meses, mas é afastado (duas vezes; na segunda licença recebe o salário pela metade). Após os dois períodos de licença, acaba descartado pelo superintendente:

– O senhor está muito doente, precisa descansar. Se fosse efetivo, podia ser aposentado. Com menos de cinco anos não se tem direito. Mas não fique triste, vou arranjar-lhe um dinheirinho. A Caixa devolverá as contribuições feitas durante os anos em que trabalhou. E também a Companhia dará alguma coisa. Com esse dinheiro, porque não volta para o Norte? Guardarei o seu lugar, se ficar bem.
Severino, daquelas palavras todas, só entendeu o essencial: estava despedido da Companhia. Recebendo em cima do corpo em ruína aquela pancada forte, vinda de supetão, quase caiu. Quedou-lhe a olhar indiferentemente o doutor, com um rosto inexpressivo de bobo.

A esposa, já com mais uma filha no colo, passa a lavar roupa para manter a casa e mesmo assim a renda da família cai a ponto de terem que mudar para cômodos cada vez menores e, enfim, para porões, onde a saúde de Severino se complica de vez. Com a esposa perdendo clientes por causa de sua condição, Severino decide se internar no pavilhão de tuberculosos da Santa Casa de Misericórdia de Santos. Após algum tempo volta para casa e, depois de algumas noites, morre durante noite.

II
Não há como saber quantas vezes o próprio Ranulpho Prata teve que dizer algo parecido aos estivadores que atendia, mas um anúncio de seu consultório publicado em 1º de janeiro de 1938 em A Tribuna indica o volume de trabalho do radiologista que, naquele ano, prestava serviço para a Santa Casa, Beneficência Portuguesa e Ambulatório Gaffrée Guinle (nomes dos sócios da concessionária dos serviços portuários, criado para o atendimento dos trabalhadores do porto).

Prata tirava raios X de pulmões, coração, aorta, estômago, visícula biliar e rins. Nota-se no anúncio a disponibilidade do médico: além do horário de atendimento (8 às 5 horas) no consultório na Praça Ruy Barbosa, 27, na Casa Alemã, a peça traz o telefone residencial do médico: 6063, prática não repetida pelos demais médicos que anunciavam na página.

Estar disponível tanto no consultório como em casa aponta que Prata considerava o exercício da medicina uma obrigação moral. Em epígrafe a Dentro da vida, seu segundo romance, de 1922, Prata aplica uma sentença do poeta santista Miguel Couto:

Não vos esqueças, então, de que se toda a medicina não está na bondade, menos vale separada dela.

A qual acrescentou:

Por menor e mais humilde que seja a sua condição, o homem pode realizar alguma coisa de grande e útil na vida.

O acréscimo talvez tenha sido colocado porque Prata considerava sua especialidade médica, a radiologia, menos satisfatória que o ofício de escrever, no que informou a Silveira Peixoto, redator da revista Vamos Ler em janeiro de 1942:

Escrevo para satisfazer uma necessidade orgânica. Médico radiologista que não passo de mero fotógrafo de vísceras, escrevo porque não posso deixar de escrever. Há uma força incoercível dentro de mim, que me faz pensar, que me faz arquitetar enredos, que cria em meu cérebro uma porção de personagens, exigem vida própria e não me deixam sossegado, enquanto não lhe dou liberdade, enquanto não apanho da pena para fixá-los no papel e aí encontrar suas aventuras.

III
O geógrafo Carles Carreras y Verdaguer, professor de Geografia e Literatura, ao comentar as descrições dos acidentes de trabalho e do avanço da tuberculose do protagonista de Navios Iluminados, destacou a literatura produzida por médicos. Assim como os padres, sua formação humanista do século XIX e início do século XX os coloca como narradores privilegiados do drama humano. Escritores sem ser escritores, formam uma categoria profissional com acesso à “documentação humana”, matéria-prima de seus escritos. Na virada de século, ainda conforme o professor, apontaram os caminhos para os estudos das condições demográficas.

O historiador Carlo Ginzburg aponta, por sua vez, a influência da forma de conhecimento médico – do caso individual à análise dos indícios – na formação das ciências humanas entre os séculos XVIII e XIX. Daí as metáforas do diagnóstico e da “anatomia da sociedade”, esta usada, por exemplo, por Karl Marx. Ginzburg vai além e aproxima a atitude do médico em relação ao paciente à do historiador em relação com seu objeto:

Mesmo que o historiador não possa deixar de se referir, explícita ou implicitamente, a séries de fenômenos comparáveis, a sua estratégia cognoscitiva assim como os seus códigos expressivos permanecem intrinsicamente individualizantes (mesmo que o indivíduo seja talvez um grupo social ou uma sociedade inteira). Nesse sentido, o historiador é comparável ao médico, que utiliza os quadros nosográficos para analisar o mal específico de cada doente. E, como o do médico, o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjetural.
     
O conhecimento médico, vale lembrar, está na base do “paradigma moderno” brasileiro, cujos alicerces são três formas de saber técnico-científico, a “a medicina (normatizando o corpo), a educação (conformando as “mentalidades”) e a engenharia (organizando o espaço). Ao se considerar um “mero fotógrafo de vísceras”, Prata inclui de uma forma bem particular o peso do saber científico da medicina na conformação da sociedade, ainda mais quando ao “mero” médico contrapõe a necessidade de escrever. Para o autor, ser médico era uma responsabilidade, não um privilégio. Silveira Bueno, na introdução sobre o autor para a segunda edição de Navios Iluminados (Clube do Livro, 1946), descreve o amigo como “médico de profissão, mas escritor de nascimento”. Mas Silveira Bueno avança na interpretação e traça uma relação entre os dois ofícios:

A medicina disciplinara-lhe a fantasia pela observação quotidiana do ser humano, a obra mais real da Criação. O laboratório do médico educara os olhos do artista para tudo ver na medida exata da verdade, embora a fantasia do escritor atenuasse um pouco a crueldade dos episódios.

Epílogo
Mas a metáfora do “fotógrafo de vísceras” pode servir para iluminar o romance  a partir de outra perspectiva. Para isso, acompanhemos a passagem em que finalmente empregado da Companhia, Severino, ainda no início do livro, vai à Praça Mauá para fazer uma fotografia para a identificação de funcionário.

– É retrato?
– Sim, senhor.
Apresentou o papelucho. O fotógrafo pegou-o sem interesse e mandou que entrasse. Aquilo era serviço barato, de carregação, que não o agradava. Daí o pouco caso.
Numa sala pequena, entupida de objetos velhos e empoeirados, Severino sentou-se na cadeira do cento, na frente de uma empanada cheia de nuvens muito azuis. O fotógrafo, arrastando os pés, parecendo reumático, ajeitou o freguês na posição oficial, de olhos postos na máquina assestada defronte. Severino, que nunca tirara retrato, estava confuso, de corpo duro, difícil de ser manejado pelas mãos do artista. Além de tudo, o calor da sala era muito, piorando a situação. Grossas gotas de suor desciam-lhe em rosário pela testa, pingando nas pálpebras que piscavam seguidamente, como se ele fosse atacado de um tique nervoso.
Isso enervou o retratista, que o desejava de feições impassíveis. E quanto mais ele pedia, mais Severino se atrapalhava, aumentando as piscadelas. Agora não era só por causa do suor; era também nervoso. Receando perder a chapa, o fotógrafo falava alto, quase esbravejava, sem nenhuma consideração para com aquela espécie de freguês.
– Fique quieto, homem, assim neste mexe-mexe não vai e eu não posso ficar aqui o dia todo, tenho mais o que fazer.
Severino magoou-se, mas não disse nada. O artista aproximou-se novamente, tentando ajeitar-lhe a cabeça pela quarta ou quinta vez. Quando a tomou nas mãos pelos parietais abaulados, que faziam recuar o occipital, achatando-a grotescamente, abriu a face num riso de zombaria:
– Esta é das boas, é chata de verdade.
Severino virou-se num assomo.
– Fique sabendo o senhor que não vim aqui para servir de mangação. Cuide do seu ofício que é melhor. Me despache.
Vendo-lhe a raiva nos olhos, o retratista mudou logo.
– Já quer brigar? Deixe disso, rapaz, estou caçoando. Eu também sou cabeça-chata, não está vendo? Sou da Paraíba.

Assim como o Fabiano de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que a mesma José Olympio iria publicar no ano seguinte, 1938, José Severino de Jesus sofre de uma inaptidão para o mundo e a cena acima é uma das mais representativas disso no romance.

Mas queria especular também que, ao ler a passagem pelo filtro da figura do “fotógrafo de vísceras”, pode-se considerar o personagem fotógrafo da Praça Mauá como a encarnação da medicina sem bondade para a qual alertava o poeta, ainda mais com todo seu potencial invasivo. Leitura que talvez seja permitida por causa do trecho em que a descrição da movimentação do fotógrafo em torno de Severino é mimetizada em termos médicos (“Quando a tomou nas mãos pelos parietais abaulados, que faziam recuar o occipital...”).

Seria fácil fazer jogo de bem contra o mal, mas o fato de o fotógrafo também ser um “cabeça-chata” torna tudo mais leve e ao mesmo tempo mais cruel.

Referências
Ranulpho Prata. Navios Iluminados. São Paulo: Clube do Livro, 1946.

Carlo Ginzburg. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Companhia das Letras: São Paulo, 2007.

Micael M. Herschmann e Carlos Alberto Messeder Pereira. O imaginário moderno no Brasil. In: A invenção do Brasil Moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30 (organizado pelos autores). Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

Carles Carreras y Verdaguer. Curso de Geografia e Literatura da pós-graduação do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Aula de 24 de abril de 2003.

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