sábado, 19 de outubro de 2013


Alessandro Atanes, para o Porto Literário

A mão na foto que segura a caneta como se fosse um punhal é do escritor português Gonçalo Tavares. A foto é de Roberta Laas e foi feita durante a oficina de criação literária que o autor realizou no Sesc Santos durante a Tarrafa Literária, promovida pela livraria e editora Realejo entre 25 e 29 de setembro.

A imagem não é à toa ou gratuita. Quem já teve a oportunidade de ouvir presencialmente o Tavares, que tem vindo bastante ao Brasil para participar de eventos literários, sabe que ele não para de anotar e rabiscar em folhas de papel debruçadas sobre suas pernas. É como se ele precisasse escrever para pensar, ou melhor, como se pensasse ao escrever.

Li uma vez que estilo, originalmente, lá na antiguidade, era o nome que se dava à ferramenta que marcava a pedra com a escrita (a palavra estilete mantém essa ideia), do que deriva o sentido atual da palavra, de que ter estilo é ter uma marca pessoal. O ato de Tavares de segurar a caneta desta forma, ainda que uma simples esferográfica, renova essa imagem.

E a caneta do autor não para de trabalhar. Aos 43 anos, ainda jovem para um escritor, tem já dezenas de livros publicados e mantém uma rotina de produção escrevendo todas as manhãs sem qualquer contato com o mundo exterior por meio de celulares ou computadores, como se estivesse no “século XIX”.

Sua série O Bairro é uma das delícias da literatura contemporânea. Ali, o estilo de dezenas de artistas, principalmente escritores, é condensado em personagens (Senhor Calvino, senhor Brecht, senhor Breton) que, mais do que a biografia dos homenageados, referem-se ao universo de suas obras, contra-mão total nesse momento em que as histórias de vida e os reality shows dominam a vida cultural.

Sobre a série, escrevi uma vez:
Mas os nomes acima não representam os escritores reais – ou empíricos, como explica Umberto Eco; eles representam uma parte do escritor, aquela que escreveu o texto. Parece óbvio, mas devemos pensar como Borges e perceber a literatura como algo que está além do escritor, algo que ele costuma alcançar, mas é maior que ele ainda que não prescinda de sua atuação. O próprio Eco, para diferenciá-la do autor empírico, denominou tal figura como autor modelo, idéia que ele mesmo admite bem abstrata, ainda que a defina como “uma estratégia narrativa, um conjunto de instruções que (no texto) nos são dadas passo a passo e que devemos (ou não) seguir”. O autor modelo é quem nos conduz, não pela história, que é função do narrador, mas pela construção textual, pelas referências e até pela multiplicidade de vozes narrativas do romance moderno. (Leia mais em: Um bairro chamado Literatura)
Durante a oficina, ele confessou que o próximo livro da série é A Senhora Bausch, baseado na obra da bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch.

Em outra série, O Reino, formada por romances, Tavares cria personagens que são afetados pelo totalitarismo técnico e político, pela ditadura e a guerra, num ambiente literário que lembra um pouco de Franz Kafka e um pouco de Robert Musil. O clima destes livros está um pouco nas duas citações abaixo, do livro Aprender a rezar na era da técnica, no qual a precisão e a arrogância cirúrgica de um médico, Lenz Buchmann, formam a metáfora da técnica cujos preceitos acabam por definir as relações sociais no mundo administrado:
O organismo doente era, para ele, materialmente culpado e, nesse sentido, Lenz construía nos seus raciocínios uma moral de tecidos, uma moral composta por células pretas ou brancas, células queimadas ou intactas, e neste campo ser imoral era não funcionar.
(...)
O seu bisturi era, isso estava claro, o mensageiro da precisão e da rectidão. A sua mensagem era a linha recta, o endireitar do desvio. O organismo doente, ou uma parte dele, entrara inadvertidamente por um atalho e o bisturi relembrava materialmente e com a sua força qual o caminho certo, qual a estrada principal.
A escrita
Essa força produtiva de Tavares se dá não apenas por talento, mas também por cultivo e reflexão sobre o ato de escrever. Durante a oficina, ele discutiu bastante a relação contida na frase “EU ESCREVO”, na qual o primeiro elemento representa a voz autoral e o segundo o pertencimento à tradição literária. É na tensão contínua entre o EU e o ESCREVER que acontece a criação que, no caso, da escrita literária, de invenção, deve buscar o não convencional, o individual, o que foge ao lugar comum. E essa fuga do convencional não deve ser confundida com irracionalismo, pois, para Gonçalo, o romantismo em torno da loucura é “tonto e perigoso”.

É exatamente o contrário, a busca pelo não convencional deve conter uma racionalidade própria, um pensamento individual, uma “linguagem privada” que transforma o entendimento médio das palavras que os dicionários nos dão em sentidos preenchidos pela trajetória de quem escreve e lê, operação na qual o autor aplica toda sua enciclopédia (expressão de Umberto Eco) na criação de uma obra, mas sem nunca deixar de aproveitar o acaso que, para os gregos, representava a vontade dos deuses e, por isso, devia ser respeitado.

E para fechar, uma imagem que une o acaso ao estilo, uma citação do pensador alemão Walter Banjamin feita por Tavares: “o golpe decisivo será dado com a mão esquerda”.

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