segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015


Por Izacyl Guimarães Ferreira*




 Corpo de festim, de Alexandre Guarnierie. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2015.


Alexandre Guarnieri seria um poeta para quem a beleza não estaria entre as palavras nem nos temas, mas numa terceira categoria de arte, fruto maduro da arte de pensar e de expressar o homem na sua inteireza de corpo e alma. E ao fazê-lo, tratar as palavras como instrumento de um pensar denso, forte e compacto, que mesmo sem desdenhar a forma, não a corteja, mas faz dela uma serva do que mais parece importar a este poeta: a exploração sistemática de um conceito, do primeiro ao último texto de um livro.

Não há malvadeza, desprezo, nojo na sua abordagem descritiva do corpo humano como conjunto de formas e funções para viver entre os outros animais e a árdua natureza. E que o homem logo aprende não ser eterna a vida: o que vive morre.

Há é uma beleza especial neste “Corpo de festim”, que enfrenta com galhardia as dificuldades de descrever anatomias humanas enquanto mostra do nascimento à morte nossa natureza corporal e com ela construir uma poesia que passo a passo, ao caminhar para o nada, vai afrontando conceitos de beleza do leitor. Porque há horror nessa beleza, o horror da consciência de que a vida tem fim.

De imediato pode-se pensar em Augusto dos Anjos, nosso poeta do corpo que enfrentou a tarefa de cantar e decantar o físico humano, afrontando um tempo ainda despreparado para outra poesia que não a de sentimentos elevados e numa linguagem “angélica”, sem trocadilho. No entanto, sua obra teve e tem sucesso de público, mais que da crítica.

Buscássemos outras afinidades e pensaríamos em certo João Cabral e, mais, em Gullar, o do “Poema sujo” e de tantos poemas que falam das funções do corpo sem enfeite, além de autores “realistas” de outras línguas e épocas, capazes de abordar sem fantasia o corpo humano em sua estrutura e em funções que seriam menos "nobres".

Estes nomes invadem o leitor de Alexandre porque é razoavelmente escassa essa poesia corporal, tal abordagem do corpo humano sem fantasia, algo mais para a prosa realista de agora e mesmo de antes, de malditos históricos. Poupo o leitor de recordar antecedentes de séculos e línguas, mas devemos ter em mente que nosso poeta não inventou o tema e sim que o trata como poeta de agora, lido e ciente do passado, expondo às claras nossa fragilidade corporal.

Se abordarmos o livro desde o título teremos de pensar na palavra ”festim”: isto é, uma festança. Mas “festim” é, também, bala de mentira, não letal, levando-nos a concluir que Alexandre joga com tais sentidos, de que se nosso corpo é para festas colossais também não é “à vera”, pra valer, isto é, que ele é mortal e se acaba como toda bala. Até as de mentira, de festim.

A capa, com o artista do escapismo que era Houdini, não deixa dúvida sobre a leitura central do livro: a de que o homem vive agrilhoado à carne, espírito encadeado ao corpo, do qual seria preciso não só escapar, mas entendê-lo na inteireza de sua dor e de sua beleza. Como se o poeta dissesse, desde a capa, que está preso a seu corpo mas se solta e volta, como artista de escapismo, a prender-se, porque o entende, e a soltar-se de novo, na medida em que conhece seus grilhões.

Lendo-se a fundo o livro (e o fiz algumas vezes entre longos intervalos), podemos e devemos pensar que o poeta joga com tudo isso, afrontando sempre os conceitos de beleza poética, de compostura literária, e vai, entre  belíssimas imagens, aos desvãos escatológicos das aulas de anatomia para estudantes de medicina. Como a proclamar que a criação literária não tem limites nem cercas, e que tudo é válido, pois já tantos autores, sobretudo novelistas, como Joyce, Miller e Bocaccio, etc, nos acostumaram a aceitar. Ou seja, tudo cabe, a criação literária é livre de censura.

Há muito a poesia deixou os pruridos dos salões e é numerosa a lista de poetas que falam do corpo no amor e nas funções naturais sem constrangimento. Tudo é válido ao sol do texto. Mas Alexandre vai mais longe e mais fundo. Seu livro é quase uma aula de anatomia, mas irá muito mais além do descritivo.

Ao escrever uma poesia que desdenha o verso tradicional, que afronta as regras da poética, Alexandre nos diz que a criação é livre. Já o fizera em seu livro de estreia, ”Casa das máquinas", onde propõe outras formas ou nenhuma forma habitual para seus textos, como a nos dizer que a criação poética não deve ser repetitiva, não tem padrão. E então, longe dos excessos de ardor do romantismo e das carências de tudo do concretismo, constrói seus textos em que um vago desejo de forma se apresenta nos blocos tipográficos que simulam estrofes, como a nos dizer que não é um autor descabelado, ao sabor só de sopros. E então constrói seus textos dispostos entre limites gráficos, linhas, tijolos em busca de uma estrutura que livrando os textos do formato da prosa tão pouco se ajusta a qualquer estrofação habitual da poética.

Mas o poeta sabe que precisa de leitores, que deve haver algum tipo de afinidade entre autor e leitor, ou não publicaria nada. Afinal, todo autor que publica está em busca de leitores, num entendimento ou num transe. Pareceria ser sua intenção, se tanto, a de desmitificar o verso, ou, na desconstrução do corpo que é seu livro, realizar também a desconstrução do verso ou da versificação, ao menos, como se nessa desconstrução do corpo fosse necessária a desconstrução do poema.

Não obstante, como na série “mecânica dos fluidos” há uma intenção de construção na linha quase "mallarmaica" de palavras soltas entre espaços, onde vemos belas, mais que isso, “poéticas” imagens:

a glândula a carrega                     cega
                  (como na ostra     a pérola)
                          ( como no arco a seta)

Noutro momento, “cotidianometria”, a simples listagem de instruções para um bom comportamento o poeta atinge momentos quase “drummondianos” ao instruir sobre como devemos agir em certas situações.

Outro momento em que o lirismo se sobrepõe ao tom descritivo de uma aula de anatomia é “limitrofagia”, onde se lê

ainda que ande muito / não percorrerá o mundo
.................
vive,mas entre limites / se livre,não é para sempre
quando alcança a outra margem,retroage
.......................

sobre poucas coisas se tem escolha
morrer / viver (sempre ou nunca) ontem / hoje
algumas outras só dobram os homens.

Os blocos construtivos aparecem logo no começo do livro, como se o poeta ainda se prendesse a limites estróficos típicos. Lemos no poema “sangue/suor/e celulose”:

a carne,que cada corte desonra
cintila nesse mal que tarda a sarar
a pressão de toda ofensiva tardia,
................................................
o que sangra    é tinta tipográfica.

Quero crer que Alexandre continua em busca de uma forma sua, não usual, capaz de servir a sua visão de mundo, que sendo quase descritiva dos objetos poéticos, fosse também única, pessoal. Em geral, todo poeta busca a sua própria linguagem, seu estilo característico, do tema à forma, como se fosse uma obrigação dizer as coisas com singularidade de impressão digital. Creio que em Alexandre essa singularidade quer ir dos temas às formas dos textos. Donde, creio, a variedade de recursos com que se apresenta nessa busca.

Fosse apenas um desejo de originalidade, muitos de seus leitores e comentaristas descartariam seu projeto poético. Ocorre que estamos diante de um criador, de um poeta que tem visão de mundo e busca expor essa visão numa forma própria, tão pessoal quanto possível. Todo poeta verdadeiro sofre em algum grau esta ânsia de originalidade. Será maior ou menor, aqui e ali nas literaturas de agora e nas de antes, mas tal ânsia é típica dos poetas autenticamente criadores.

Mas voltemos à concepção do livro, seu motor temático. "Corpo de festim" é uma viagem carnal poderosa, que vai, depois de um começo relativamente manso, expondo nossa humana precariedade corporal. Mais que pólvora de mentira, de festim, seríamos jogos dos deuses ou do acaso, e embora meticulosamente composta, máquina a que se desse corda e então passasse a funcionar sozinha, até autodestruir-se, rompida a corda.

O homem seria assim uma espécie de máquina ou casa de máquinas, um brinquedo divino a mexer-se sozinho, pela bateria super carregada do sangue alimentando funções e movimentos. O subtítulo diz "antropoemas". Poemas do homem. A capa com foto de Houdini, um "prometeu encadeado" explicita o que vamos ler: o homem, ser pensante e carregado de emoção está preso às contingências da vida, do corpo em sua fragilidade e luta, do espírito ou que nome queiramos dar ao que em nós sente e pensa.

A não musicalidade de sua poesia, apenas aqui e ali soando em medidas correntes dos versos, chega a ser uma virtude, a mostrar que não sendo eterna a vida é ou pode ser um jogo, corpos movidos pela sua própria estrutura, com cabeça pensante e ou coração a definir caminhos, movimentos, paixões: casa de máquinas, no plural. Mais: há neste livro, comparado ao anterior, um ganho nos recursos inumeráveis da palavra, dos sons aos ritmos de sua composição nos poemas.

E entre momentos líricos, a demonstrar que não é um dissecador de corpos mas um poeta, vai de descrições de aulas de medicina a voos de lirismo de alta qualidade, a ver-se em "retrogressão":

o núcleo oculto / e acendê-lo / esse coração na sombra
..................................... 
                                                                      porque o vazio
esculpiu o caminho ( ou um abismo ) pensamento adentro
( ao despir-se diante de si mesmo ao espelho / descobrir ali /
na própria ruina desvestida ( um arremedo )
.......................................
( à vezes sobra a sanha mais que o sonho)

Veja-se ainda, em "necrópsia":

se estoura a clepsidra do tórax, se explode o delicado
vidro, outrora incólume, da mina íntima escorre
o líquido dos glóbulos pelo túnel dos ossos
.................................
quais das horas vividas permitiria limpa, cristalina,
uma só plataforma na memória? mas o frio cronômetro do não
exige tão só o dia / a hora / a causa mortis
..................................
                                  outro homem se extingue
                                  vai-se mais um morto para o rio estige

O livro termina com um longo, belo e duro poema de título "mandala de houdini". Mandala, palava de riqueza expressiva colossal, onde prisão e liberdade conflitam. E de Houdini, o homem que escapa dos grilhões. Entre os versos finais destaco estes:

você a quem dirijo estas palavras que escrevo sem segredo e nenhum delírio
...................................
o "eu", essa celeuma trêmula, essa centelha presa ao medo da morte fincada/ no centro de uma mandala tramada no nada contra a angústia do esquecimento
...................................
"ah se harry houdini voltasse á vida!" e se pudesse aprender com ele... num ato de
máxima coragem livrar-se dos cadeados e das grades... num flash, num splash, no
zastrás ou abracadabra, num golpe de mestre, ah se fosse possível simplesmente,
e para sempre  
                         DESAPARECER  DE  VEZ

Deixo ao leitor conclusões ou interpretações distintas das minhas, mas arrisco dizer que este Poema não é ou não seria ou não pareceria pretender expor um modo tal ou qual de ser e pensar do poeta, mas assim como o primeiro e já citado, seria só a ocupação poética de uma determinada visão de mundo, pessimista talvez e que este Poema não é ou não seria ou não parece pretender expor um certo e íntimo modo, pessoal, de ver a vida humana.

Ouso dizer que poetas de estirpe não apenas se exibem como pessoa, sim que expressam a humanidade, uma personalidade fictícia eventualmente, e embora participando a fundo do que dizem, estão ou estariam, como autores de teatro, dando voz a outros, a todos nós, ou parte de nós. Assim, este "Corpo de festim", que ao leitor desavisado pareceria ser a manifestação de um pessimismo, é de fato a poderosa realização poética não de um tiro de pólvora, de uma execução, ou suicídio, mas um exercício vital, a guerra corporal que é esse viver para a morte de todos nós. O sorridente Houdini da capa não esconde a noção, clara a meu ver, de que como Prometeu, o homem está preso à sua condição de ser vivo que sabe que vai morrer. Mas sorri, quer soltar-se, atreve-se a pensar que vai soltar-se. Como de fato o fez inúmeras vezes.

Ouso até dizer que o "desaparecer de vez" possa ter mais de uma leitura, de morrer a ter alguma outra vida. Porque ao longo de todo o livro a noção de escapismo leva o leitor a pensar que o homem é um animal que espera, tem esperança, quer algo melhor do que isso que está aí. Vai sair dos grilhões, quaisquer, como o Houdini que cada um de nós traz na alma para libertar o corpo acorrentado à mortalidade.




* Nascido em 1930 no Rio de Janeiro, Izacyl Guimarães Ferreira foi adido cultural e diretor de centros culturais para o Itamaraty no Uruguai, na Costa Rica e na Colômbia, entre 1984 e 1999. Antes, de 1953 a 1983 foi publicitário em agências no Brasil e no exterior e na Rede Globo; estreou na poesia em 1950 e desde então vem mantendo produção regular. Em 1980, reuniu no volume Os Fatos Fictícios toda a obra anterior. Depois disso já publicou cerca de uma dezena de livros, entre os quais os citados Memória da Guerra (2002) e Discurso Urbano (2007, com o qual ganhou o prêmio da ABL). Ensaísta e divulgador de poesia, o autor publica com frequência artigos em jornais, revistas e sites especializados.


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