terça-feira, 25 de agosto de 2015



Por Marina Ruivo

Salão de beleza, do mexicano Mario Bellatin, é um livro perturbador e, em certo sentido, atemporal. Sua história pode ter ocorrido há muitos anos, ou ser projetada no futuro, porque fala de algo terrivelmente humano e, mais, algo da natureza de todos nós, seres viventes: a morte e o modo como ela é, com o perdão da palavra, vivida. A morte pode ser um incômodo – e, talvez mais que ela, a doença, a enfermidade. Mas se naturalizássemos a doença e a morte, como se dá no mundo animal, talvez elas perdessem sua carga de espanto e crueza. Como com os leões. Ou os peixes – que constituem, em seus aquários, uma das metáforas centrais desta pequena e desassossegada novela. 

O narrador, cujo nome não alcançamos saber, fala em primeira pessoa, num tom distanciado e quase gélido, acerca do que virou seu antigo salão de beleza: um Morredeiro, um lugar para onde acorrem homens atacados por uma doença fatal e epidêmica, já em seu estágio final, buscando passar seus últimos dias, quando não mais serão aceitos pelos hospitais, que temem o contágio, muito menos pelos parentes.

Desse mundo exclusivamente masculino e de manutenção precária da vida, sem remédios nem religiões, o narrador é o senhor. As regras são suas e ele faz tudo sozinho, suportando voluntariamente o peso que é este tudo: os gemidos dos doentes, seu mau cheiro, a troca de fraldas, a lavagem dos lençóis e arrumação das camas, o preparo da sopa rala de verdura e moídos de frango. Ele faz tudo calado, com um senso de obrigação que é quase incompreensível – à semelhança do cuidado que já teve com seus peixes e aquários, que lhe davam prazer, mas cujas mortes não eram nada mais que corpos a jogar na privada. Quando se cansava de uma espécie e queria criar outra, simplesmente não os alimentava, para que morressem, e mesmo aqueles que ainda assim restavam vivos, iam parar na privada. Ele se dedicava então aos novos peixes que adquiria. Com esmero, paciência e desvelo. Como faz com os hóspedes (e não são internos, nem pacientes). Sem paixão, sem proximidade.

E agora, no presente da narração, vê os sinais da doença em seu corpo, e se preocupa (mas até essa preocupação é fria) com o que será de seu Morredeiro. Será tomado pelas Irmãs Caridosas e desvirtuado em seus propósitos? Terá ele energia para, antes de morrer, permitir que o local regresse à forma que tinha antes, quando era um templo da beleza, regido por ele e mais dois amigos cabeleireiros, já mortos pela mesma e inominada doença? Chega a pensar em comprar novamente os equipamentos do salão, para que apenas ele se regozije, pois sabe que ninguém virá ser atendido por um cabeleireiro doente.

Porém, sabe que isso será muito difícil. Suas forças estão cada vez menores e ele não aguenta mais nem ir à sauna, a diversão do sábado à tarde. As noites em que ele e os dois amigos se travestiam em busca de homens são só lembranças.

Desde que seu salão virou um Morredeiro que ele sente, e assim o nomeia, haver passado por uma “transformação interna”. Ao saber que vai morrer logo e que seu reinado sobre a morte terá fim, recupera com brevidade sua história e observa como o processo fez com que ele mudasse muito, inclusive abrindo-lhe espaços para pensar tanto, coisa que, segundo ele, nunca fez na vida. A brevidade com que ele nos narra, indo e voltando no tempo, inclusive trazendo alguns elementos de sua infância, é fator decisivo para o forte impacto que a novela de Bellatin provoca, nesta bem-vinda edição de 2007 da Leitura XXI, de Porto Alegre, em ótima tradução de Maria Alzira Brum Lemos, para a coleção “Novelas Exemplares”, da editora.

Salão de beleza, publicado originalmente em 1994, foi incluído em uma seleção dos vinte melhores relatos em língua espanhola escritos de 1980 para cá, por um júri de escritores e críticos latino-americanos. A edição da Leitura XXI é a primeira e única desta novela que merece ser lida e relida em diferentes momentos da vida de cada um de nós. A cada releitura, novas camadas de percepção são alcançadas, como acontece com toda boa obra de arte literária.

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