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Rene Magritte - The Lovers |
Por Maria Laura Conti Nunes
Findo o jantar, o rapaz a levou até a porta de casa. Ela segurou em suas
mãos, deu um longo suspiro e disse “Meu coração está apertado. Você é um homem
maravilhoso, inteligente, carinhoso. Sei que se te beijar vou me apaixonar. Vou
sonhar com você por noites a dentro. Fazer planos. Querer filhos. Você vai
hesitar, me magoar, partir meu coração. Vou me tornar uma louca, ligar pra você
nas piores horas, vou querer atenção, vou implorar pra que não me deixe. Vou te
perseguir. Melhor, mesmo, que não me beije”.
O rapaz ainda atônito exclamou, “Mas...” e ela não o deixou terminar.
“Sei que vai ser assim. Olhando seus olhos já vejo nossos filhos brincando. São
três, dois meninos e uma menina. Todos com seus olhos”.
O rapaz recolheu suas mãos nos bolsos traseiros da calça, suou frio e
ainda ouviu “então, teríamos gatos e cachorros, um carro grande para os fins de
semana para que você pudesse manter esse seu carro de solteiro que tanto gosta.
Vejo tudo isso. Nossas vidas entrelaçadas para sempre, se desenrolando bem aqui
na nossa frente como um longo tapete vermelho. Basta que caminhemos sobre ele,
ao som de bolero de Ravel, o que acha? E façamos nossa felicidade. Sei, então,
que vai hesitar, e por isso não posso te beijar. Você vai destruir meu coração
dizendo que me precipito e não entenderei sua posição”.
O rapaz, depois disso, num movimento rápido e preciso, balançou a mão da
moça numa despedida quase ofegante. “Acho que você tem razão. Somos novos,
nosso primeiro encontro, não quero ser responsável por tantas desilusões”. A
moça sorriu um sorriso triste, franziu a testa o quanto pode e fez questão de
evidenciar aquela minúscula lágrima presa no canto dos olhos. Não a derrubou.
Achou que assim seria mais dramático. Então, balançando as mãos num tom de voz
vacilante, soluçou baixinho “Adeus. Seja feliz”.
Entrou em casa e logo foi surpreendida pela irmã “Você é inacreditável.
Usou o discurso de ‘não te beijarei porque vai destruir meu coração’ de novo?”.
A moça se voltou para a irmã com cara enfurecida “você me armou com um cara que
gosta de ‘asa de águia’? Ele foi de casa ao restaurante chacoalhando o corpo ao
som de ‘dança da manivela’. E depois disse que não perde Zorra Total e que tem
esperança num Brasil melhor desde que Eduardo Cunha assumiu o Congresso. O que você
queria que eu fizesse?”.
“Você só precisa permitir que alguém possa comover seu coração”
finalizou a irmã.
Então, após poucas semanas, estava ela sozinha em um restaurante. Um
homem pediu para sentar-se à sua mesa. Ele era lindo. A voz grossa, peito largo.
Postura impecável. Conversaram um pouco e mesmo assim descobriram muito em
comum. Ela estava terminando o livro que ele tinha começado. Frequentavam
praticamente os mesmos lugares, e ele até lamentou, com certa incredulidade, o
fato de nunca terem se encontrado antes.
Então, trocaram telefones e combinaram de sair. Saíram poucos dias
depois. Cinema e logo após um bar. Falaram de viagens, de bebidas, comidas,
família, política, literatura e a certa altura da noite ela já não podia
disfarçar o seu encantamento.
Pagaram a conta e ele a acompanhou até a porta do bar. O rapaz segurou
forte em sua mão, olhando dentro de olhos da moça, disse “Não posso te beijar.
Sou assassino confesso de minha ex-mulher. Paguei minha pena com a sociedade,
mas não me livro dessa culpa. Vago pelo mundo odiando a mim e temendo
prejudicar outras mulheres. Já fiz terapia, mas não me curo. Não consigo seguir
adiante em relacionamentos e acabo fugindo para sofrer longe e sozinho”.
Enquanto ele falava, fazia sinal para um táxi que se aproximava. Deu-lhe
um abraço apertado, um suspiro triste, daqueles que arrastam o mundo, e
acrescentou “você é especial demais para se amarrar em um pulha como eu. E eu
sou um solitário a carregar o amor do mundo sem poder dar a alguém como você.
Não posso te oferecer nada além do que essa sina que me persegue. Sofreria por
te fazer sofrer, e sofro por não poder te amar”. Num rodopio, abriu a porta do
táxi, acomodou a moça no banco traseiro e mandou o motorista seguir. “Adeus, é
com o coração partido que te vejo ir embora. Seja feliz!".
Demorou uns minutos pra moça recuperar a respiração. Sentiu um remorso
pela incapacidade de cura daquele homem, ao mesmo tempo o aperto no coração por
ter encontrado o sonho de sua vida e, com ele, tamanha desgraça.
Foi quando, de repente, percebeu a cena. Vítima de si mesma, caíra em
seu próprio golpe. Como era idiota! Aquele era a sua tática. Discurso rápido,
autopiedade, inflar o ego alheio, comover e não se tornar culpada pela
desilusão do outro. Não estava acreditando. Estava ali, sozinha naquele táxi
vagando sem destino, e ”...espera...ah, filha da puta! Aquele homem ficou com a
minha carteira”.
Sobra a autora:
Mãe de criança, mãe de bichos, corredora, tresloucada,
advogada-jornalista não praticante, diva pop sem graduação, mulher.
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