segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Catherine Deneuve em "Em um pátio de Paris"


Por Marina Ruivo

Não, não gosto de cozinhar, infelizmente é verdade. Faço o trivial porque não há outro jeito, e ainda assim vivo fugindo da obrigação e recorrendo aos quilos que existem aos montes por aí. Já assumo logo de cara que é melhor. E assim também esclareço que aqui não se trata de trazer receitas nem nada do tipo.

Mas, para além do fato óbvio e um tanto ridículo de o meu nome ser Marina, gosto da ideia de deixar as letras e palavras sendo vagarosamente amaciadas, temperadas, postas em conserva. O Houaiss me ensina que marinar é “pôr em marinada (esp. peixe ou carne)”, e que marinada é “salmoura ou molho condimentado para conservar, temperar ou amaciar carnes; vinha-d'alhos” – aliás, taí uma das poucas coisas com que já me diverti na cozinha: adoro cortar e picar alho e cebola, e colocar alguma carne em vinha-d’alhos, para deixá-la temperadinha e poder assá-la no dia seguinte, é algo meio mágico de se fazer, mesmo que não tenham sido inúmeras as minhas tentativas nesse campo.

Voltando ao ponto, este será um espaço de pôr em marinada algumas letras, palavras e textos. Sobre o quê? Muitas coisas ou nada, claro. Trarei aqui pequenas crônicas ou contos, assim como resenhas e leituras críticas sobre textos ficcionais.


Os primeiros ingredientes a entrar em marinada seguem aqui:


as pessoas enlouquecem calmamente

Estava na parte mais baixa, funda mesmo, do antigo vale do corregozinho, encanado há muitos anos. 
Primeiro a vi do carro, estava sentada exatamente em frente à única vaga da rua. Hesitei. Guardador ali não, eu arrumaria outro lugar pra parar. E fui embora.

Horas depois, já com o carro estacionado, tendo ido de ônibus ao Centro e voltado, passei a pé pela mesma rua e a vi de longe. Ela e as coisas que estão lhe servindo de casa, ali na calçada. Um cobertor xadrez cinza e preto fazendo as vezes de tenda, cobrindo o colchão onde ela está dormindo. E logo adiante uns panos esticados no chão, formando uma espécie de banca de exposição de produtos: vários pequenos quadrinhos coloridos, todos pintados em pedaços de papelão, todos trazendo o desenho de flores, com traços infantis, as cores não variando mais que o amarelo, o rosa, o roxo e o verde. 

Ela me olhou nos olhos apenas uma vez. O resto do tempo continuou passando o rolo da tinta amarela num novo pedaço de papelão, sem parar, mesmo enquanto respondia às minhas perguntas-tentativas de entabular uma conversa e fazer o tempo passar, dando uma pausa da caminhada no sol de quase quarenta graus. Não sabia quanto tempo ficaria por lá, nem pra onde iria depois. Quis saber seu nome, mas ela respondeu que era esse mesmo que estava escrito, era esse.

R. Marta, era o que todos os quadrinhos diziam. R. Marta, apenas isso. Seria Renata Marta? Rita Marta? Marta compunha o nome duplo ou era sobrenome? Podia Marta ser sobrenome? Ou o nome dela é Marta e ela põe o R ponto porque acha que fica melhor, mais bonito, mais charmoso, mais alguma coisa? Nunca vou saber e não leva a nada perguntar, eu sei, mas ao sair de lá, caminhando, me vi pensando nessas coisas, nos olhos quase pretos que ela botou nos meus apenas quando quis saber meu nome, e na sua concentração e entrega àqueles quadrinhos. Quem teria lhe ensinado? Na minha fantasia, ela aprendeu a fazer do papelão a sua tela em algum lugar como um CAPS, ou outra instituição do tipo. Pode ser puro exercício de imaginação vazia, mas aquela mulher parecia não poder parar de pintar, desesperadamente ela tinha entendido e aceitado que pintar era tudo o que ela tinha que fazer na sua vida. E isso era fabuloso. Não havia preocupação nenhuma com relação à possível beleza do que pintava. Nem de sua possível utilidade ou inutilidade. Nem vendê-los parecia muito interessá-la, apesar de eles estarem dispostos como se numa banca – eles podiam estar apenas secando, apenas isso. Eu cheguei a perguntar o preço do que achei mais bonito, um cujo fundo, diferentemente dos demais, era roxo, e não amarelo. Ela demorou a me responder, sete e cinquenta, sem ansiedade nenhuma. O que ela precisava era pintar, pintar e pintar.

Enquanto pinta ela não pensa em mais nada. E quando falo nada não me refiro apenas ao fato de ela dormir na rua, que já é fato bastante e é muito mais do que um “apenas”. Mas ao pintar ela sai de si e sai de todos os labirintos de sua mente. Esquece o que já foi, o que deixou para trás, o que nunca teve e o que não sabe que virá. Concentra-se num fora: a tela, o papelão, a flor. Nada mais existe. Nem medo, nem pensamentos girando obsessivamente, nem vontade de gritar e sair correndo. Ela apenas pinta, pinta, pinta e pinta, o tempo todo que passa acordada. 

R. Marta me fez lembrar de Antoine. Outro lado do mundo, outra esfera social, outro tipo de mundo (o da ficção). Mas Antoine, o músico que protagoniza o filme "Em um pátio de Paris", tinha a mesma necessidade de R. Marta de se concentrar em atividades que o tirassem do aprisionamento mental. Quase nada sabemos de sua vida pregressa, apenas que ele largou a banda na qual era o vocalista e que tinha um relativo público, bem como uma mulher, e foi morar em outro ponto da cidade, bem longe, empregando-se como zelador em um prédio, onde buscava se encher de ocupações que o fizessem parar de pensar. O filme conta com Catherine Deneuve em um papel fabuloso, de uma mulher que enlouquece calmamente, viciosamente e sem prazer no mesmo prédio onde Antoine se empregou, a partir de uma rachadura que surge na parede da sala de seu apartamento e que a atormenta furiosamente. Não vou contar a história aqui, porque não vem ao caso. Basta dizer que vale a pena assistir, é bonito, nos faz rir muitas vezes, e emociona muito também. 

Destaco apenas a necessidade que Antoine tinha de encontrar algo que o tirasse completamente de seu mundo, e que o tirasse de dentro dele mesmo. Assim, varria o chão do pátio, recolhia as folhas, lavava tudo quantas vezes fossem necessárias. E ainda assim a angústia não passava e ele de novo cheirava e se sentia forte e poderoso, pra depois sucumbir e passar um dia inteiro na cama, e no outro dia voltar a fazer coisas e coisas e coisas que o levassem pra fora, para não pensar, para sair de sua mente.

Muitas vezes já pensei se a solução para minha vida seria empregar-me como balconista de alguma loja, para lidar a todo tempo com o público e me preocupar apenas em atender, esquecendo por completo da minha mente que às vezes teima em rodar. Já sonhei em passar o dia como assistente em um pet shop, por exemplo, lavando e tosando cachorros, com a mente calma, estável, sem nenhuma oscilação. As possibilidades são muitas. Ainda não parti para nenhuma delas e na verdade nem sei se algum dia partirei. Por enquanto ficam as letrinhas aqui, funcionando como as flores dos meus papelões. Essas telas que a gente espalha por aí e nem sabe se serve pra alguma coisa, se está ficando bonitinho, ou se são apenas traços infantis que, por alguma razão, e que se dane todo o resto, precisamos produzir e produzir e produzir.

2 comentários:

  1. Gostei muito, marina!
    O texto pode trazer à discussão as relações entre loucura e literatura, entre o fazer artístico e a insanidade. Escreve-se (assim como se pinta) para tentar... adiar a morte, reter o tempo, registrar nossa passagem por este absurdo lugar chamado mundo...
    http://biblioteca.versila.com/?pagination=1&q=loucura%20%20literatura

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  2. Angustiante ler prima vez, sá Marina marinando, cruiz-in-credo, tal Marcelo Ariel e Flávio Amoreira me tirando de mim por versos e prosa azucrinantes.

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