terça-feira, 14 de junho de 2016


Tiago Zanoli



Erre Amaral: Como foi a transição do jornalismo para a literatura?

Tiago Zanoli: Não houve. E esse é um dos pontos em comum entre mim e o narrador de Chorume. Foi a literatura que levou para o jornalismo. Sempre quis escrever ficção, mas sabia que precisaria de uma outra atividade como fonte de renda. No fim, o jornalismo foi mais frustrante do que satisfatório. Durante sete anos de trabalho dentro de uma redação de jornal, fui incapaz de escrever uma linha sequer de ficção. Não por culpa da profissão. Era um problema comigo mesmo. Por alguma razão que não sei explicar, simplesmente travei. Toda essa angústia, claro, se transformou no combustível para a escrita de Chorume.

Erre: Chorume é o seu primeiro romance, como nasceu esta narrativa?

Tiago: Eu meio que já tinha desistido de escrever literatura. Estava perdido e desmotivado dentro de uma redação de jornal, sem saber o que mais fazer da vida, achando que ficaria por ali até me aposentar, fazendo a mesma coisa até o fim. Foi o Saulo Ribeiro, escritor e editor (responsável pela Cousa), quem me provocou a retomar a literatura como projeto de vida. Ele enxergou algum potencial literário em narrativas brevíssimas que eu soltava no Facebook, de tempos em tempos, sem compromisso nenhum, e perguntou por que eu não escrevia um livro. Essa, aliás, foi uma pergunta que muita gente me fez durante uns 15 anos, pelo menos. Mesmo com o Saulo me incentivando, demorei um pouco ainda, até conseguir destravar. Isso rolou quando ganhei um exemplar de “Espalitando”, antologia de contos do Paulo Bono, que foi publicada pela Cousa. Li o livro dando muitas gargalhadas e me toquei de que era daquela linguagem mais solta, suja e malandra que eu precisava. Além disso, o fato de serem contos centrados num mesmo personagem, num mesmo espaço-tempo, imediatamente me remeteu ao “Trilogia Suja de Havana”, do Pedro Juan Gutiérrez, que li em 2000. Como não me sentia capaz de escrever algo mais extenso, optei pelos contos e escrevi a primeira versão. Na essência, sempre foi a mesma história, o que mudou foi a estrutura. Saulo foi o primeiro leitor, fez as primeiras críticas e deixou claro que a obra não nasceu para ser uma antologia de contos, mas ainda não se realizava como romance ou novela. Isso em meados de 2013. Passei quase um ano trabalhando o texto, dessa vez pensando nele como uma novela. Aliás, é importante ressaltar que foi o título, Chorume, que nasceu primeiro. Escrevo com alguma frequência e guardo fragmentos, frases soltas, ideias, argumentos, sinopses etc., sem saber no que vão se transformar. O livro, em si, só existe para mim depois do título. É o título que vai me fazer buscar, entre as anotações, a história a ser contada. É o título que determina o tema, o tom, o ritmo, tudo.


Capa de Chorume

Erre: É possível pensar em algo de autoficção em Chorume?

Tiago: É possível, mas não foi escrito com essa proposta. Assim como é possível pensar em algo de roman à clef também. A partir do momento em que escolhi a história (ou talvez tenha sido ela que se impôs a mim), eu me usei como molde para a construção do protagonista. Obviamente, não quer dizer que sejamos a mesma pessoa. Eu coloquei nele tudo o que há de ruim em mim e exagerei esses traços, tornando-o muito pior do que eu jamais conseguiria ser. E o processo de escrita, graças a isso, acabou funcionando como um processo de expurgação. Concluí o livro com a sensação de que, eu mesmo, me tornei uma pessoa melhor depois de colocar para fora alguns demônios, aprisionando-os nas páginas de um livro. Em Chorume, podemos isolar várias pequenas narrativas que também foram tiradas de minhas vivências, mas não necessariamente como ator desses acontecimentos. Muito ali veio da observação. Sobre a escrita de Sexus, Plexus e Nexus, Henry Miller disse ter lançado mão de suas memórias, seus sonhos, suas fantasias, seus delírios. Segui por esse caminho. Em Chorume, dois momentos de clímax, por exemplo, vieram de sonhos que tive.

Erre: O seu romance é divido em três capítulos, percebo em cada um deles o mesmo protagonista em perfis diferentes: em “cheirações de narizinho” ele se apresenta um ser narcísico, numa narrativa lírica e delirante; em “estado violência”, a sua figuração é a de alguém que recuperou a capacidade de racionalizar a situação, ganhando ares de um arguto, embora, tosco investigador jornalístico, cheio de maneirismos argumentativos, por fim, em “armai o próximo”, no qual a narrativa flui em velocidade máxima, ele muta num malogrado escritor, dublê de ghost writer e de assassino. Seria este um roteiro de leitura interessante de Chorume?

Tiago: Não pensei a divisão como sendo em capítulos. Prefiro chamar de partes. Outros podem vê-la como uma divisão em três atos, embora não siga a forma clássica dos três atos. Essa numeração, no fim, foi acidental. Não a planejei. Seja como for, é uma divisão que marca os ritmos. A segunda parte é um breve momento de... não digo de sobriedade, mas de retomada da consciência, em que o protagonista tenta colocar sua vida nos eixos. Ele precisa trabalhar, garantir o ganha-pão, o ganha-pó, e também tem a meta de se realizar como escritor. Nesse ponto a linguagem fica um pouco mais careta, quase formal, mais próxima da reportagem. Até elementos da linguagem jurídica busquei, lendo um processo criminal. Essa divisão distingue também os universos por onde o protagonista transita: imprensa, instituições oficiais e favelas. Enfim, são três os elementos que marcam as diferenças dessas partes: o comportamento do protagonista, o ritmo da narrativa e os universos predominantes em cada uma delas.

Erre: Como você vê a recepção da crítica e dos/as leitores aos/às novos/as escritores/as?

Tiago: Acredito que a melhor crítica, hoje, está fora da imprensa. Os jornais não têm mais comportado crítica literária. Ainda se fala de livros, mas não da maneira como deveria ser. O Globo, por exemplo, foi pouco a pouco acabando com o Prosa & Verso, um caderno maravilhoso que, durante muito tempo, foi uma de minhas principais fontes de referência. Nos últimos dois anos, quase não tenho acompanhado a produção crítica. Pela internet esbarro em uma coisa ou outra, em blogs e revistas eletrônicas. A verdade, confesso, é que tenho pouco a dizer sobre a crítica, porque me distanciei dela. Entre os leitores, a recepção é boa e as redes sociais ajudam o autor a chegar até seu público. Falo por mim. Eu não esperava muito do meu livro e acabei surpreendido pelo interesse que despertou. Só não sei dizer se a causa de todo esse interesse foi um bom marketing ou se o fato de o livro ter sido distribuído gratuitamente. Em todo caso, se a recepção não fosse boa, imagino que não teríamos tantos autores publicando nem editoras interessadas. O modelo das editoras independentes, com tiragens menores sem perder a qualidade editorial, abre cada vez mais espaço para novos autores e oferece ao público uma literatura diversa e de alto nível. Não é à toa que autores publicados por editoras independentes têm figurado entre finalistas de grandes prêmios literários. Isso quando não abocanham o prêmio, como rolou com a Micheliny Verunschk, que ganhou o Prêmio São Paulo no ano passado, com um romance publicado pela editora Patuá. Figurar entre os best-sellers, produzindo boa literatura, é para os raros. Mas já fico feliz por saber que pelo menos umas 300 pessoas leem o que escrevo. Há cerca de uma semana, fiquei sabendo que duas professoras de literatura, em escolas diferentes, trabalharam com Chorume em sala de aula, em turmas de terceiro ano. Isso despertou o interesse pela obra entre a molecada. Outra feliz surpresa para mim.

Erre: Como é seu envolvimento com o movimento literário em Vitória?

Tiago: Não sou um grande ativista, confesso. Trabalhando em jornal, eu escrevia principalmente sobre literatura, em caderno cultural. Nesse período, comecei a acompanhar mais de perto a produção local e a frequentar eventos literários. Cheguei a mediar alguns, inclusive. Enquanto estava no jornal, meu esforço era de contribuir com a divulgação da boa literatura produzida por aqui. Foi assim que me tornei amigo do Saulo Ribeiro e de outros escritores, a propósito. Mas eu não sou uma figura muito sociável. Sempre gostei de ficar mais na minha, de ser um observador quase invisível. Nesses últimos anos, minha contribuição foi modesta. Como também sou fotógrafo (mais amador do que profissional), fiz retratos de alguns autores e fotos para capas de alguns livros, além de um ou outro frila como revisor de texto. A saudade de escrever sobre literatura em jornal tem me levado a pensar na internet como mídia para falar dos livros de que gosto, só que ainda não decidi nada sobre isso.

Erre: O que vem depois de Chorume?

Tiago: Só o mau cheiro. Brincadeira... As ideias são muitas. Se antes eu não me sentia preparado para escrever romances, quase todos os meus projetos agora são desse gênero. Há quase um ano venho trabalhando em um romance policial burlesco. Menos na escrita, mais no planejamento. Já desenvolvi o argumento principal e defini a ambientação. Vai se passar em Vitória, num futuro distópico. Tenho uma pasta cheia de anotações e material de pesquisa. Devagar ele vai ganhando corpo. Também estou quebrando a cabeça com alguns contos, que pretendo reunir para inscrever no edital de literatura da Secult neste ano, se o prazo deixar. Foi por meio desse edital, aliás, que Chorume ganhou vida. Fora da literatura, tenho me aventurado na escrita de um roteiro de longa-metragem. O cineasta Edson Ferreira, diretor do filme “Entreturnos”, me convidou para ser parceiro dele nesse projeto. O roteiro, na verdade, já está pronto. Talvez tenhamos de fazer alguns ajustes aqui e ali. O próximo passo agora é conseguir financiamento para que o roteiro, de fato, se transforme em filme.


Tiago Zanoli nasceu em Vitória, em 1979. Já foi jornalista, mas hoje está recuperado. É analog bad influencer e, nas horas vagas, dedica-se à literatura e à fotografia. Chorume é seu primeiro livro.

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