sábado, 4 de novembro de 2017

Luiz Brás

Por Marina Ruivo

Sabendo de quem é o conto e do gosto do autor, Luiz Brás, por realidades futuras, pós-humanas, já podemos ter alguma ideia do que iremos ler. Mas “O índio no abismo sou eu” é absurdamente surpreendente. E maravilhoso.

Logo ao início, começamos a perceber que a estranha realidade que nos é apresentada em primeira pessoa deve ser um pesadelo, sonho, alucinação. Depois, começam a aparecer elementos ligados ao hospital e pensamos então algo relacionado a coma: a personagem-narradora, seja ela quem for (Um homem? Uma mulher? Um bicho, uma planta?), deve estar acordando de um coma, por isso hesita em perceber que está num hospital, e não na praia com que sonhava há pouco.

Alguns elementos vão introduzindo a estranheza e desconfiamos se é mesmo um hospital, ou se talvez a personagem esteja drogada, viagem alucinógena. Temos uma enfermeira que some de repente – e não que vai embora, ela some mesmo, literalmente –, um teto gelatinoso e, de repente, um médico (é um hospital, sim!) que fala com ela sem abrir a boca. Ainda assim hesitamos, até que vem a explicação que paulatinamente vai nos levando a questões muito delicadas da humanidade, revelando o aspecto cruel da tecnologia, num mundo futuro, duzentos anos adiante do nosso, em que as pessoas se comunicam pela brainet, a internet do cérebro, penetrando diretamente nos pensamentos de milhões de outros seres sem esforço algum. Um mundo em que a realidade e a virtualidade se fundiram a tal ponto que até a gravidade não atua mais sobre os seres.

Um mundo em que não só a tecnologia é assustadora em sua capacidade de prolongar a vida humana, mas é assustadora também a permanência da legião dos deserdados, e do que eles podem fazer, para tomar à força aquilo de que são excluídos. 

Não há nem de longe mocinhos nem heróis no mundo projetado pela mente criativa de Luiz Brás, escrito de forma ágil e precisa, levando-nos da curiosidade ao assombro e à perplexidade. A violência está em toda parte, e, mais, funde-se a tal ponto que as individualidades se confundem.

O conto foi publicado no livro Geração Subzero, de 2012, paródia das antologias organizadas pelo próprio Luiz Brás (ainda em sua versão original, a de Nelson de Oliveira), mas para reunir escritores cuja produção não é reconhecida pela crítica (acadêmica). Ainda que veja muita importância na leitura para entretenimento, sobretudo porque ela pode ser prazerosa e chamar mais e mais jovens para a leitura literária, me incomoda um pouco, porém, a espécie de ranço antiacadêmico que o organizador desta Geração Subzero, Felipe Pena, às vezes ameaça manifestar – da mesma maneira que o ranço acadêmico é insuportável. Mas entendo as razões da obra e sei que ela ocupa um lugar importantíssimo.

De todo modo, o conto de Luiz Brás, para mim, é muito mais do que “entretenimento”. É literatura das boas, sem precisar de adjetivo que a especifique. Além do mais, relaciona-se de perto com a ficção que vem sendo escrita por Brás, como Não chore ou Paraíso artificial, para ficar apenas com os títulos mais recentes.

P.S.: Venho trabalhando há algum tempo esse conto com alunos bastante jovens, que não têm a leitura como prática diária, e o sucesso é absoluto. Todos ficam fascinados e muitos dizem que nunca leram nada tão louco, que não faziam ideia de que a literatura podia ser assim, gostosa, agradável, doida. Viva a doideira da literatura e o prazer da leitura!

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