quinta-feira, 23 de novembro de 2017


Pintura de Claire Fletcher - The Black Winkle Studio



Por Jean Pierre Chauvin


Tinha saído apressada, “talvez a chuva”. Cruzou a avenida em diagonal (antes que pedestres paguem pela infração, atualíssima, de atravessar logradouros fora da faixa), a economizar tempo sobre o piche. Era a terceira vez que voltava ao sebo em vinte e sete dias. Estava ansiosa. 

Aprumou a mochila nas costas, conferiu: carteira, chave, celular, óculos; na necessaire, lixa de unha, batom e espelho. Estava pronta para a empreitada. Mal entrou no estabelecimento, mirou a escada para o segundo pavimento.

Subiu. Precisava localizar, “onde era, mesmo?” a estante de “Literatura Estrangeira”. Doze passos à frente, três à esquerda, um para a direita. Já a encontrou…

De súbito, é surpreendida pelo funcionário da loja. “Ei, ei!”. Lívida, olhou para os lados duas vezes; mirou o teto, fechou os olhos: “dar explicação, que seja”. Antes que o moço desse andamento à acusação de roubo, outra funcionária subiu a escadinha aos pulos e foi se somar ao mini furacão moral. “Onde já se viu? Cadê seus pais?”. A menina silenciara. O menino fazia coro às reprimendas da colega: “Era o que faltava! Só de pensar que você deveria estar na escola, estudando, que é lugar de criança”.

A menina da mochila arregalou os olhos. Esboçou dizer que “não, senhores!”, mas emudecera. Irritados com o mutismo da garota, os atendentes a pegaram, um de cada lado, pelos braços. “Vamos, lá, menina, conversar com o seu Zé, que é o gerente!”

Desceram a escadinha estreita aos tropicões, “calma, calma, você está me machucando!”. Por pouco não derrubaram uma pilha de livros repetidos que prometiam traduzir a CLT (antes que de sólido nada sobre para os trabalhadores que aí vêm). 

Vinte e sete passos em linha reta, tornam à esquerda, depois à direita. “Chegamos”. Seu Zé ajeitou os óculos com a pinça de polegar e indicador. Olhava fixamente para a garota de mochila. “Bem, o que se passou?”. 

O garoto, empertigado como se tivesse recebido gorda comissão de venda, disparou: “Essa garota estava em atitude suspeita, logo reparei. Subi atrás e, grande surpresa!, deparei com ela fuçando a estante L34”. 

Insatisfeita com o protagonismo, algo inédito, do colega, a vendedora emendou: “Desconfiei que havia algo errado desde o momento em que ela entrou no sebo. Estava encapando alguns livros, tarefa que só interrompi para averiguar o que ela estava fazendo”.

“Calma, calma”, disse o gerente. Seu Zé olhou longamente para a menina. Pretendia dar-lhe a chance de se explicar. “Alguma questão em casa, talvez. Você brigou com seus pais? Mostra o livro que queria levar!”

A menina da mochila continuava silente. Permaneceu desta forma por trinta e dois segundos e quarenta milésimos, então ouviu-se o timbre da sua voz: “Eu não ia levar nada...” 

Todos os três caíram em semigargalhada. “Como não, se eu vi, garota?”; “Até parece!”; “Conta outra, menina!”. Agora seis olhos a fulminavam. “Os seus pais sabem o que anda fazendo?”; “Você mora onde, garota?”; “Vou repetir a pergunta: que livro queria levar?”

Vinte e dois segundos em silêncio. “Que insolente!”; “Escuta, minha filha, se não vai abrir a boca, diga seu número, que vou ligara para os seus pais”; “Onde já se viu?”. 

A menina da mochila perdeu a paciência. Sem brusquidão, virou-se em direção ao balcão, tirou a mochila das costas…

“Ei, o que pensa que está fazendo?”; “Calma, calma, garotinha!”; “Olha bem o que está pensando fazer!”

Ela se desviou do atendente e depositou a mochila sobre o balcão. Abriu o zíper – estava furiosa – e quase soletrou: “Eu não ia levar nada [pausa] [suspiro]. Essa é a terceira vez que venho até aqui e vocês nunca me notaram”. 

“Ah, era o que faltava...”; “Deixa disso! Acha que temos tempo para reparar em cada cliente da loja?”; “Estou no ramo há trinta e dois anos! Modere o tom!”
Então ela retirou uma sacola preta da mochila. Dentro dela havia seis livros em bom estado de conservação. Havia algo de errado, no entanto. “Os livros estão sem o selo da loja! Ela os removeu! Que rapidez! Isso, sim, que é ladrazinha das melhores!”.

Então, a menina da mochila abriu a boca pela terceira e última vez: “Eu não ia levar nada! Nas duas visitas, fiquei um tempão no sebo, até memorizar o lugar das estantes. Hoje eu vim deixar mais livros de ‘Literatura Estrangeira’ [fez sinal de aspas com as mãozinhas] no espaço vago da prateleira L34”. 





0 comentários:

Postar um comentário

Os comentários ao blog serão publicados desde que sejam assinados e não tenham conteúdo ofensivo.