Alessandro Atanes, para o PortoGente
I
No texto anterior apresentei comentários de Flávio Viegas Amoreira e Marcelo Ariel, deste blog, a uma foto de Arthur Rimbaud encontrada há poucos dias e acrescentei a eles trecho de um poema de Alberto Martins em que o próprio poeta Rimbaud aparece na Abissínia, África, mesmo lugar da foto.
Começamos hoje com outro poema de Martins, Rimbaud na América, que fecha o livro Cais:
Martins traz Rimbaud a uma viagem imaginária à América, talvez antes de, já doente, ter voltado à Europa para morrer na França – ou quem sabe a América não seja a morte?, ou, pelo menos um outro chamado para a aventura, como se Rimbaud fosse um personagem de Stevenson ou Conrad, em exploração tanto da geografia como do espírito.
II
A viagem de Rimbaud à África é um mito da literatura moderna, um suspiro épico de uma aventura romântica e de afirmação da literatura como coisa do mundo da mesma forma que vender armas em um continente retalhado sob o jugo dos impérios europeus do fim do século XIX.
Cais de Alberto Martins foi publicado pela Editora 34 em 2002. Em 2006, a Companhia das Letras publica no Brasil Os detetives selvagens, de 1998, do chileno Roberto Bolãno, também bem rodado por aqui. No miolo do livro, na série de depoimentos sobre os protagonistas do título, Jacobo Urenda fala sobre Arturo Belano, um dos tais detetives e alter ego do autor. O depoimento, não sabemos a quem, é dado em Paris em junho de 1996. É o mais recente de uma série que se inicia no DF, o Distrito Federal, México, em janeiro de 1976, logo após as aventuras dos protagonistas que conhecemos na primeira e terceiras partes por meio do diário de um poeta de 17 anos que, entre 2 de novembro de 1975 e 15 de fevereiro do ano seguinte, relata o período que se segue ao convite que recebe dos protagonistas para fazer parte dos Real Visceralistas, grupo da vanguarda poética da nova geração. Da vanguarda latinoamericana dos anos 70 ao subemprego latinoamericano na Europa – a mesma Europa que colonizou África e América – Arturo Belano alimenta o desejo pela aventura africana. É o que revela o depoimento de Urenda, fotógrafo também latinoamericano que mora em Paris e trabalha para uma agência jornalística europeia.
O argentino Urenda fala do Belano que conhece em Luanda, na agência postal, como correspondente de um jornal em Madri e logo também de veículos latinoamericanos. Ele, um cosmopolita cidadão do mundo morando na capital francesa, começa seu relato com uma analogia interessante sobre a familiaridade do horror entre os povos colonizados.
Ou mais à frente:
Ele mesmo traz Rimbaud para a conversa:
Não se trata de analisar leituras – ótima ironia – mas o caso é que em alguns dos relatos anteriores, de pessoas que conheceram Belano durante sua temporada na Europa, sobretudo Espanha, acompanhamos manifestações da década de 80 sobre o personagem nas quais pode-se conferir suas fantasias africanas.
Em outro texto, Un paseo por la literatura, assinado em 1994, ainda não publicado em português, Bolaño enumera uma série de sonhos, alguns deles recheado de imagens africanas, como os sonhos 10 e 11.
Ou os sonhos 22 e 23:
E o 30:
Rimbaud na América, de Alberto Martins, e uma viagem imaginária de um autor real; Bolaño na Europa, onde desenvolve sua obra, e a viagem de formação de um escritor; e Belano na África, cumprindo uma profecia literária, e a viagem real de um personagem fictício. Diversos modos para uma viagem literária.
Epílogo
Paulo Leminsky escreveu ou disse uma vez que se Arthur Rimbaud, lido por Bob Dylan e Jim Morrison, vivesse nos anos 60 e 70 com certeza seria um astro do rock, daqueles da trilogia sexo, drogas e rock’n’roll. Fecho o texto de hoje com Rimbaud Rock, de Marcelo Ariel:
Referências:
Alberto Martins. Cais. São Paulo: Editora 34, 2002.
Roberto Bolaño. Os detetives selvagens. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 (1ª ed. 1998).
Roberto Bolaño. Tres. Barcelona, Espanha: El Acantilado, 2009 (1ª ed. 2000).
Marcelo Ariel. Tratado dos anjos afogados. Caraguatatuba: LetraSelvagem, 2008.
I
No texto anterior apresentei comentários de Flávio Viegas Amoreira e Marcelo Ariel, deste blog, a uma foto de Arthur Rimbaud encontrada há poucos dias e acrescentei a eles trecho de um poema de Alberto Martins em que o próprio poeta Rimbaud aparece na Abissínia, África, mesmo lugar da foto.
Começamos hoje com outro poema de Martins, Rimbaud na América, que fecha o livro Cais:
Joelhos em febre
ouro na barriga
e – quase esquecia –
as varizes:
assim desembarcas
encharcado até os ossos
pelo sol da Abissínia.
No fundo, o desejo
de estar sempre de partida
como se poesia fosse
– horror à terra firme! –
a orla
de um litoral absoluto.
Mas há recifes na costa
e dentes de esqualo
no alto-mar.
Além do quê,
é impossível prever
quando o espírito
– santo
ou maligno –
falará.
Por isso engole as pedras
que trouxeste no bolo.
Aqui terás de recomeçar.
Martins traz Rimbaud a uma viagem imaginária à América, talvez antes de, já doente, ter voltado à Europa para morrer na França – ou quem sabe a América não seja a morte?, ou, pelo menos um outro chamado para a aventura, como se Rimbaud fosse um personagem de Stevenson ou Conrad, em exploração tanto da geografia como do espírito.
II
A viagem de Rimbaud à África é um mito da literatura moderna, um suspiro épico de uma aventura romântica e de afirmação da literatura como coisa do mundo da mesma forma que vender armas em um continente retalhado sob o jugo dos impérios europeus do fim do século XIX.
Cais de Alberto Martins foi publicado pela Editora 34 em 2002. Em 2006, a Companhia das Letras publica no Brasil Os detetives selvagens, de 1998, do chileno Roberto Bolãno, também bem rodado por aqui. No miolo do livro, na série de depoimentos sobre os protagonistas do título, Jacobo Urenda fala sobre Arturo Belano, um dos tais detetives e alter ego do autor. O depoimento, não sabemos a quem, é dado em Paris em junho de 1996. É o mais recente de uma série que se inicia no DF, o Distrito Federal, México, em janeiro de 1976, logo após as aventuras dos protagonistas que conhecemos na primeira e terceiras partes por meio do diário de um poeta de 17 anos que, entre 2 de novembro de 1975 e 15 de fevereiro do ano seguinte, relata o período que se segue ao convite que recebe dos protagonistas para fazer parte dos Real Visceralistas, grupo da vanguarda poética da nova geração. Da vanguarda latinoamericana dos anos 70 ao subemprego latinoamericano na Europa – a mesma Europa que colonizou África e América – Arturo Belano alimenta o desejo pela aventura africana. É o que revela o depoimento de Urenda, fotógrafo também latinoamericano que mora em Paris e trabalha para uma agência jornalística europeia.
O argentino Urenda fala do Belano que conhece em Luanda, na agência postal, como correspondente de um jornal em Madri e logo também de veículos latinoamericanos. Ele, um cosmopolita cidadão do mundo morando na capital francesa, começa seu relato com uma analogia interessante sobre a familiaridade do horror entre os povos colonizados.
É difícil contar esta história. Parece fácil, mas é só chegar mais perto que a gente se dá conta de que é difícil. Todas as histórias de lá são difíceis. Viajo para a África pelo menos três vezes por ano, geralmente para as regiões quentes, e, quando volto a Paris, tenho a impressão de que ainda estou sonhando e tenho dificuldade para acordar, muito embora se suponha, ao menos em teoria, que os latino-americanos não se impressionam tanto quanto os outros com o horror.
Ou mais à frente:
Enfim, éramos os típicos latino-americanos de quarenta e poucos anos que se encontram num país africano à beira do abismo ou do colapso, o que no caso dá no mesmo. A única diferença estava e que, quando meu trabalho acabasse, sou fotógrafo da agência La Luna, eu iria voltar a Paris e o coitado do Belano, quando acabasse o dele, iria continuar na África.
Ele mesmo traz Rimbaud para a conversa:
Quando voltei a Paris, ele ficou em Luanda. Tinha pensado e ir para o interior, onde ainda pululavam fora de controle os bandos armados. Antes de partir, tivemos uma última conversa. Sua história era bastante incoerente. Por um lado concluí que a vida não lhe importava nem um pouco, que ele tinha arranjado aquele trabalho para ter uma morte bonita, uma morte fota do comum, uma imbecilidade do gênero, é sabido que minha geração leu Marx e Rimbaud até virar as tripas (não é uma desculpa, não é uma desculpa da maneira que vocês pensam, no caso não se trata de analisar leituras).
Não se trata de analisar leituras – ótima ironia – mas o caso é que em alguns dos relatos anteriores, de pessoas que conheceram Belano durante sua temporada na Europa, sobretudo Espanha, acompanhamos manifestações da década de 80 sobre o personagem nas quais pode-se conferir suas fantasias africanas.
Em outro texto, Un paseo por la literatura, assinado em 1994, ainda não publicado em português, Bolaño enumera uma série de sonhos, alguns deles recheado de imagens africanas, como os sonhos 10 e 11.
Sonhei que estava em um caminho africano que logo se transformava em em caminho mexicano. Sentado em uma escarpa, Efraim Huerta jogava dados com os poetas mendicantes do DF.
Sonhei que em um cemitério esquecido da África encontrava a tumba de um amigo cujo rosto já não conseguia lembrar.
Ou os sonhos 22 e 23:
Sonhei que encontrava Gabriela Mistral em uma aldeia africana. Tinha emagrecido um pouco e adquirido o costume de dormir sentada no chão com a cabeça entre os joelhos. Até os mosquitos pareciam reconhecê-la.
Sonhei que voltava da África em um ônibus cheio de animais mortos. Em uma fronteira qualquer aparecia um veterinário sem rosto. Sua cara era como um gás, mas eu sabia quem era.
E o 30:
Sonhei que estava morrendo em um pátio africano e que um poeta chamado Paulin Joachim me falava em francês (só entendia fragmentos como "o consolo", "o tempo", "os anos que virão") enquanto um macaco enforcado balançava do galho de uma árvore.
Rimbaud na América, de Alberto Martins, e uma viagem imaginária de um autor real; Bolaño na Europa, onde desenvolve sua obra, e a viagem de formação de um escritor; e Belano na África, cumprindo uma profecia literária, e a viagem real de um personagem fictício. Diversos modos para uma viagem literária.
Epílogo
Paulo Leminsky escreveu ou disse uma vez que se Arthur Rimbaud, lido por Bob Dylan e Jim Morrison, vivesse nos anos 60 e 70 com certeza seria um astro do rock, daqueles da trilogia sexo, drogas e rock’n’roll. Fecho o texto de hoje com Rimbaud Rock, de Marcelo Ariel:
Rimbaud Rock
É o nome da banda
No auge
do centésimo show
os músicos tocam
fogo no próprio corpo
no meio
de uma versão de ‘Purple Haze’
com trinta segundos.
Logo após a platéia
de onze mil adolescentes vai embora
mascando chicletes de cocaína.
Um deles de 13 anos comenta:
“Não eram eles, era um show holográfico.”
“E o cheiro de carne queimada?”
Outro comenta.
“Era o pessoal da primeira fila”
alguém responde.
Referências:
Alberto Martins. Cais. São Paulo: Editora 34, 2002.
Roberto Bolaño. Os detetives selvagens. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 (1ª ed. 1998).
Roberto Bolaño. Tres. Barcelona, Espanha: El Acantilado, 2009 (1ª ed. 2000).
Marcelo Ariel. Tratado dos anjos afogados. Caraguatatuba: LetraSelvagem, 2008.
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