quinta-feira, 1 de abril de 2010

Alessandro Atanes, para o PortoGente

Escrevi em O exportador das letras santistas, como o escritor Flávio Viegas Amoreira elabora uma poética a partir de seu “sentimento atlântico do mundo”, do qual seriam exemplos livros como A biblioteca submergida, Escorbuto: cantos da costa, Os contornos da serra são adeuses do oceano ao cais e até mesmo Sampoema, dedicado a São Paulo, mas escrito a partir da perspectiva de quem habita o litoral.

mar em minúscula reparei tamanho da intimidade da composição. mar é composição. intermédio / encadeamento / concatenação. lugares são psicologismo / caem à luva / enterremos onde nasce, frente ao

poente. vista de longe remete aos Açores. aproxima de quem vêm do Prata. se reajunta Bela ou Comprida.

reajunta Salamina. tálamo. tautológica curva. sente agora sem molde. 'obscenus'.

Açores, a foz da Bacia do Prata, as ilhas Bela e Comprida, fica caracterizado neste trecho de A biblioteca submergida o espaço poético do Atlântico.

Além do Atlântico (ou aquém, depende do ponto de vista), para lá do Estreito de Gibraltar, a menção à Batalha de Salamina entre persas e gregos nos revela também um espírito análogo e ancestral ao do Atlântico. É o Sentimento Mediterrânico do Mundo, cuja matriz é a Odisséia de Homero nos primórdios gregos. De clássico em clássico, é um sentimento que se estende até o século XX, com a obra-prima de historiografia O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II, de Fernand Braudel, no qual se apresenta o conceito de longa duração pelo qual as mudanças históricas ocorrem em meio a uma série de continuidades atemporais.

Essa ideia de permanência do espírito aparece no verbete Mediterrâneo do Dicionário para Ociosos de Joan Fuster (1922-1992), escritor espanhol de expressão catalã, ensaísta e poeta que vim a conhecer no ano passado. No seu dicionário, o sentimento mediterrânico do mundo é estampado logo no primeiro parágrafo do verbete, nesta pretensiosa tradução do catalão:

Os habitantes do Mediterrâneo, em geral, são muito orgulhosos de ser isso: moradores do Mediterrâneo. Anima-os uma espécie de vago patriotismo marítimo - marítimo de terra firme, é claro –, bem pouco solidário certamente, porém tão vaidoso e arrogante como qualquer outro patriotismo.

E a ligação direta com o passado logo se faz:

Por pouca que seja a cultura geral de que dispomos, o ir e vir das ondas – “la mer, la mer toujours recommencée” – despertará em nossa memória um vasto repertório de referências insignes, de nomes vibrantes e acetinados, acontecimentos graciosos e conspícuos. Começaríamos, por exemplo, com o próprio nascimento de Vênus, adulta e calipígia, entre uma espuma miraculosa e surpreendente fértil. Ou pelo bom Ulisses, astuto como ele só, épico pelos quatro cantos, nostálgico recalcitrante do “fio de fumo do país”. E depois, o caminho ficaria aberto às mais douradas variações: de Salamina a Paul Valéry, de Sócrates a Sophia Loren, de Napoleão às Quatre Estacions – as de Vivaldi, entende-se –, de Botticelli a Carles Riba, de César Borja ao Parthenon, de Virgílio à Palestrina, de Joan Miró às Termópilas, de Euclides ou São Paulo à Dama de Elche, e assim ao infinito.

Patriotismo marítimo, expressão que bem exemplifica não só os sentimentos atlântico e mediterrânico do mundo, como também o universo portuário, do cais, esse limite de pedra e concreto entre oceanos e nações.

Referências:
Flávio Viegas Amoreira. A biblioteca submergida. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003.

Joan Fuster. Diccionari per a ociosos. Parte I. Clàssics Catalans del Segle XX. Barcelona: El Observador, 1991 (1ª ed. 1964).


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