Ademir Demarchi
Talvez por ouvir uma conversa entrecortada em Itajaí, sobre ir a um mirante marinho, sonhei com baleias. A sensação física de estar próximo do mar, no Sul, é notável. O mar, lá, tem conotações imponderáveis. Apenas ouvi a conversa e as baleias passaram a nadar em minha mente: nós forjamos o inconsciente. Com os pés nas águas, eu as assistia em sua alegria infantil saltar como balões leves e inflados, quase ao alcance das mãos.
Suspendemos, também, a realidade, deixando a irrealidade ao alcance físico do corpo e de todos os sentidos. A tal ponto que delas se fez presente aquela sensação física de inflar e flanar como um esquilo voador para de novo cair nas águas marinhas como baleia.
Como sempre, por ser incognitamente um peixe, ou por ter sido longinquamente uma espécie deles, habito a água e os desvãos da realidade líquida forjando minha existência numa irrealidade cotidiana.
Um peixe, quando não nada à procura de alimento, paira e escuta com o corpo milhões de estímulos e informações que vêm pela água, na qual ele está incorporado de tal modo que é a água mesma e somente um peixe voador tem consciência disso porque salta para fora dela e encontra o vazio abismal que é o ar que respiramos.
Já como um peixe no estado de aquário entreouvi outra conversa: “ah ele gosta, sim, de crianças. O que não gosta é de pagar pensão”.
Logo outro pepino marinho contou sua inglória incursão por um cartório tentando obter uma certidão que demorou pois todas as pesquisas o davam como morto por ter o mesmo nome de outros peixes abissais já devorados até à espinha. Quando saiu do cartório, não tinha mais tanta certeza se estava vivo, mas a certidão o contrariava dizendo que sim em suas mãos.
Finalmente um terceiro molusco relatou que passou a vida com um nome ambíguo, inclusive pelo exército, e só foi descobrir, quando tentou se casar, que em sua certidão de nascimento estava inscrito que seu sexo era feminino. Diante disso, a cartorária foi categórica: não fazemos casamentos de pessoas do mesmo sexo. Até voltar à superfície e encontrar ar, ele havia ido até o fundo do mar, o abismo insondável de uma vida que até então parecia, no papel, ser outra.
Finalmente, indo para outro canto do aquário, encontrei o poeta Juliano Garcia Pessanha que disse: “há uma linha de horizonte, há um desfiladeiro frágil entre o buraco negro, onde zanzam os abismais, e o buraco branco, onde erram os figurantes”. “Homens do buraco branco são os cidadãos da legalidade metafísica, os habitantes da representação e da palavra anticorpo. O segredo desses homens consiste em que vestiram o uniforme da identidade mundana e acabaram por se confundir com ele.”
E, num sussurro, lembrou que Nietzsche dizia que quem não é dono de dois terços do seu tempo é um escravo. Olhou para o lado e voltou à carga: conforme escreveu um buraco negro chamado Fernando Pessoa, a vida é o estar numa estalagem esperando a diligência do abismo.
Talvez por ouvir uma conversa entrecortada em Itajaí, sobre ir a um mirante marinho, sonhei com baleias. A sensação física de estar próximo do mar, no Sul, é notável. O mar, lá, tem conotações imponderáveis. Apenas ouvi a conversa e as baleias passaram a nadar em minha mente: nós forjamos o inconsciente. Com os pés nas águas, eu as assistia em sua alegria infantil saltar como balões leves e inflados, quase ao alcance das mãos.
Suspendemos, também, a realidade, deixando a irrealidade ao alcance físico do corpo e de todos os sentidos. A tal ponto que delas se fez presente aquela sensação física de inflar e flanar como um esquilo voador para de novo cair nas águas marinhas como baleia.
Como sempre, por ser incognitamente um peixe, ou por ter sido longinquamente uma espécie deles, habito a água e os desvãos da realidade líquida forjando minha existência numa irrealidade cotidiana.
Um peixe, quando não nada à procura de alimento, paira e escuta com o corpo milhões de estímulos e informações que vêm pela água, na qual ele está incorporado de tal modo que é a água mesma e somente um peixe voador tem consciência disso porque salta para fora dela e encontra o vazio abismal que é o ar que respiramos.
Já como um peixe no estado de aquário entreouvi outra conversa: “ah ele gosta, sim, de crianças. O que não gosta é de pagar pensão”.
Logo outro pepino marinho contou sua inglória incursão por um cartório tentando obter uma certidão que demorou pois todas as pesquisas o davam como morto por ter o mesmo nome de outros peixes abissais já devorados até à espinha. Quando saiu do cartório, não tinha mais tanta certeza se estava vivo, mas a certidão o contrariava dizendo que sim em suas mãos.
Finalmente um terceiro molusco relatou que passou a vida com um nome ambíguo, inclusive pelo exército, e só foi descobrir, quando tentou se casar, que em sua certidão de nascimento estava inscrito que seu sexo era feminino. Diante disso, a cartorária foi categórica: não fazemos casamentos de pessoas do mesmo sexo. Até voltar à superfície e encontrar ar, ele havia ido até o fundo do mar, o abismo insondável de uma vida que até então parecia, no papel, ser outra.
Finalmente, indo para outro canto do aquário, encontrei o poeta Juliano Garcia Pessanha que disse: “há uma linha de horizonte, há um desfiladeiro frágil entre o buraco negro, onde zanzam os abismais, e o buraco branco, onde erram os figurantes”. “Homens do buraco branco são os cidadãos da legalidade metafísica, os habitantes da representação e da palavra anticorpo. O segredo desses homens consiste em que vestiram o uniforme da identidade mundana e acabaram por se confundir com ele.”
E, num sussurro, lembrou que Nietzsche dizia que quem não é dono de dois terços do seu tempo é um escravo. Olhou para o lado e voltou à carga: conforme escreveu um buraco negro chamado Fernando Pessoa, a vida é o estar numa estalagem esperando a diligência do abismo.
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