segunda-feira, 18 de julho de 2011

Alessandro Atanes, para a colunda Porto Literário do Portogente

Cidade Juarez. Fronteira entre México e Estados Unidos. Una Embotelladora. Uma mulher fala: esgoto, aids, o aborto, tudo vem da fronteira. Outra fala: mundo do trabalho, nada para tirar da terra porque não há água. Depois, sobrevoamos a própria linha da fronteira em uma animação, passando por uma cidade até a seguinte. Depois um mapa, close na fronteira entre os dois países e, novamente, Cidade Juarez. Assim começa o vídeo-ensaio Performing the border, no próximo parágrafo.



O terceiro depoimento fala da fronteira como algo altamente construído – assim como construídas são também as papeleiras. Por ela sempre se passa, mas é diferente passar como turista, cidadão, viajante, estudante, trabalhador e, nesse último caso então, indo de diretor de turnê de pop star às operárias que fazem todo o trabalho degradante das fábricas.

A autoria do vídeo-ensaio é de Ursula Biemann, artista, curadora e pesquisadora das relações socioespaciais de migração, mobilidade, tecnologia e gênero. Em apresentação de seu trabalho publicada no nº 1 da revista Piseagrama, ela descreve a inserção da mulher pobre mexicana na papeleira globalizada: “Performing de Border trata de questões sobre a divisão internacional do trabalho, a migração e a sexualização dos corpos femininos na organização pós-industrial global. Traça um registro espacial da conexão entre o corpo feminino e a alta tecnologia, revelando patologias na esfera pública e descrevendo a construção da fronteira nos seus sentidos materiais e metafóricos”.

A construção do discurso sobre a fronteira durante o capitalismo pós-industrial – que consiste em afirmar o quanto é bom ter em casa um televisor novo e barato fabricado em um canto remoto do mundo – ocorre para naturalizar a ideologia, em torna-la mito, como escreveu Roland Barthes. O mito das papeleiras é tão forte e tão entranhado na sociedade local, e por extensão em toda América Latina, que nunca foi muito destaque que a cidade de Juarez concentra a ocorrência de centenas de assassinatos de jovens mulheres, operárias ou prostitutas.

Uma das formas de ultrapassar o mito é por meio da arte e do pensamento, por isso mesmo Ursula Biemann apresenta seu trabalho como vídeo-ensaio.

Roberto Bolãno (1953-2003), autor chileno que se estabeleceu na Catalunha, Espanha, morou no México entre a adolescência e os primeiros anos da vida adulta antes de se mudar para a Europa. O México já era o cenário de Os detetives selvagens, e volta a ser a porta do inferno latino-americano em 2666 (publicado em 2004, um ano após a morte do autor), no qual nosso continente torna-se depositário – na verdade, um herdeiro – do gosto nazista pelo massacre industrial. Tal herança já era tema de um de seus primeiros livros, La literatura nazi en América, de 1996 (ainda sem tradução no Brasil).

Na primeira parte do romance 2666 quatro críticos literários europeus chegam a Santa Teresa, no deserto de Sonora, México, cidade-símbolo de Bolaño (também está em Os detetives...). Estão atrás de indícios do escritor alemão Benno Von Archimboldi, de quem são especialistas. Archimboldi, provavelmente um pseudônimo, é um homem recluso, nem a viúva de seu editor o conhece, que começa a publicar após a 2ª Guerra Mundial. Ninguém o conhece, mas histórias ouvidas fazem os críticos cruzarem o Atlântico atrás de seus passos em Santa Teresa. Lá, descobrem os assassinatos.

A segunda parte trata de um professor chileno que mora em Santa Teresa. Enquanto ele  mostra a cidade aos críticos, acompanhamos também sua preocupação com a própria filha. Na terceira, um repórter de um jornal do Bronx, Nova York, vai à cidade para cobrir uma luta de boxe e, lá, descobre os assassinatos. A quinta parte é a de Archimboldi e, antes, a quarta parte dedicada aos assassinatos. Nesta parte, Bolaño arranca a camada de naturalização da violência ao nos descrever as cenas em que os corpos são encontrados. Não é algo invasivo como os zooms do SCI que entram na carne. Em Bolaño não há autópsias, há a surpresa e o horror de quem encontra os corpos em roupas rasgadas, retalhos de bolsas e uma ou outra bijuteria. As centenas de corpos estão lá, um por um, distribuídos por 352 páginas. Assim começa a quarta parte:
A morta apareceu em um pequeno descampado no bairro Las Flores. Vestia camiseta branca de manga comprida e saia de cor amarela, um número acima do seu, até os joelhos. Uns meninos que brincavam no descampado a encontraram e avisaram os pais. A mãe de um deles ligou para a polícia, que apareceu depois de meia hora.
Referência:
Roberto Bolaño. 2666. Barcelona, Espanha: Anagrama, 2004.

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