quinta-feira, 28 de julho de 2011

Alessandro Atanes, para a coluna Porto Literário do Portogente

... os livros falam entre si.
Umberto Eco

Em seu ensaio Borges e a minha angústia da influência, Umberto Eco (foto) ressalta que mais do que a influência direta entre dois autores (A e B), há sempre forças literárias e históricas que se posicionam acima deles, formando mais um ponto (X) na cadeia. A triangulação entre A, B e X chamamos de “cultura”, “cadeia de influências precedentes” ou, na preferência do teórico e ficcionista italiano, “universo da enciclopédia”. E por ele que a coluna Porto Literário navega hoje.

I
Marcel Schwob (1867-1905), escritor francês um tanto esquecido na atualidade, publica em 1896 Vidas Imaginárias, em cujo volume está também A Cruzada das crianças, no qual recria a partir de diversos pontos de vista uma história do século XIII na qual um grupo de crianças cruzam a pé a Alemanha e a França em direção a Jerusalém. Nas Vidas imaginárias, como bem avisa o título, ele traça perfis de figuras históricas ou inventadas.

A receita é dada pelo apresentador de recente edição em português, Marcelo Jacques de Moraes: “Vale esclarecer que Schwob jamais inventa inteiramente as narrativas que as compõem, trata-se de reescrever a reinterpretar textos mais ou menos antigos, relatos e documentos recolhidos em sua vasta cultura”.

Ou seja, Schwob vai diretamente a X no triângulo de Eco. No próprio prefácio que escreveu para seus perfis, ele justifica a realização do material: “A arte é contrária às ideias universais, descreve apenas o individual, deseja apenas o único. Não classifica, desclassifica”. Entre os perfilados, quatro piratas: William Phips, Capitão Kid, Walter Kennedy e Major Stede Bonnet.

II
Jorge Luis Borges (1899-1986), como afirma Eco em seu artigo, “usou a cultura universal como instrumento de jogo”, isto é, seu negócio era também o X. E ele conhecia a obra de Schwob, tanto que em 1949 escreveu o prefácio da edição argentina de A Cruzada das crianças. Não tenho como saber quando Borges conhece a obra do francês, mas ainda na década de 30, o argentino publica as biografias de História universal da infâmia, que chama de “exercício de prosa narrativa” no prólogo à primeira edição (1935), no qual atribui o livro às suas leituras de Robert Louis Stevenson (1850-1894), autor de O médico e o monstro, e G.K. Chesterton (1874-1936), autor das aventuras de Padre Brown, ambos contemporâneos de Schwob, o que deixa claro como o X do triângulo funciona. Ah, entre os perfis, o de uma pirata, a Viúva Ching.

III
Leitor de Schwob e de Borges, o chileno Roberto Bolaño (1953-2003) publica em 1996, ainda sem tradução no Brasil, La literatura nazi en América, no qual conta biografias de escritores fictícios de todo o continente, todos ligados à ultradireita ou simpatizantes do autoritarismo. A tensão entre ficção e história, que o apresentador de Schwob nota em sua obra, retorna completamente nos relatos do chileno: ainda que os biografados sejam inventados, a atração pelo autoritarismo em nosso continente é bem palpável.

Schwob é um dos autores que aparecem na série de poemas em prosa de Bolaño Un paseo por la literatura, também inédito em português, no qual o narrador descreve sonhos nos quais aparecem uma série de escritores. Schwob aparece no sonho 49. A tradução é minha:

49. Sonhei que nas diligências que entrava a saíam de Civitavecchia via o rosto de Marcel Schwob. A visão era fugaz. Um rosto quase translúcido, com os olhos cansados, apertado de felicidade e dor.

O chileno, assim, faz literatura a partir de sua própria enciclopédia, fazendo do ponto X do triângulo das influências a matéria-prima de sua obra.

Referências:
Marcel Schwob. A Cruzada das crianças / Vidas Imaginárias. Tradução Dorothée de Bruchard. Introdução Marcelo Jacques de Moraes. São Paulo: Hedra, 2011.

Umberto Eco. Borges e a minha angústia da influência. In: Sobre a literatura. Ensaios. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2003.

Jorge Luis Borges. Marcel Schwob. A Cruzada das crianças. In: Prólogos, com um prólogo de prólogos. Tradução Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 (1ª edição 1975)

Jorge Luis Borges. Historia universal de la infamia. Buenos Aires, Argentina: Emecé, 1954 (1ª edição 1935).

Roberto Bolaño. La literatura nazi en América. Barcelona, Espanha: Seix Barral, 2008 (1ª edição 1996).

Roberto Bolaño. Un paseo por la literatura. In: Tres. Barcelona, Espanha: Acantilado, 2009 (1ª edição 2000).

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