Alessandro Atanes, para a coluna Porto Literário do Portogente
A Odisseia e a Ilíada de Homero, Os Lusíadas de Camões, A Tempestade de William Shakespeare, Robinson Crusoé de Daniel Defoe, A Ilha do Tesouro de Stevenson, O cemitério marinho de Paul Valéry, A Barcarola de Pablo Neruda. Da antiguidade ao Século XX, estas e outras narrativas existem por causa das viagens marítimas e de seu impacto na História e na imaginação dos povos.
Quando lançou Escorbuto – Cantos da Costa (2005), o escritor Flávio Viegas Amoreira disse que a obra era uma releitura pós-moderna de Os Lusíadas, desta forma filiando-se a esta tradição, ainda que em uma chave de linguagem inventiva. Escrevi então: “O texto, um longo poema, inventa palavras, esgarça as estruturas das frases. É daqueles que se enfrentam”.
I – Onze, sou Onze oito deitando-seo que intento excede alexandrinosvai além decassílabos...
...Diogo Cãojaneladas estrelas caramujos ameaçadoresconcha ponto epifânicoperspectiva MAR parêntesesum navio celofane recorta-me o esquadrodeito e vago saloio marrano ingente.
O crítico e escritor Nelson de Oliveira escreve na orelha do livro que Escorbuto é um “rodamoinho desnorteado de bússolas”, numa alusão de que a travessia, no século XXI, não é mais marítima, é pela própria linguagem.
Nesse período são publicados ainda os Contogramas (2004), livro de relatos curtos. Seu primeiro romance, Edoardo o Ele de nós (2007), encerra um ciclo com a editora 7Letras, do Rio de Janeiro, que publica toda sua obra até o momento. (Nesse período, passei de leitor a amigo e creio ser justo voltar a avisar o leitor sobre isso – o que fiz em um dos primeiros artigos que escrevi sobre os livros de Flávio).
Outro livro artesanal, Sampoema sai no ano seguinte com xilogravuras de Moisés Edgar em uma edição da Tipografia Acaia. O autor canta a capital da perspectiva de quem a (pre)vê desde o litoral.
o Mar é longe / oceanos empoçam castelosde areiaentro por grutas / grotas / elevadorescapengamshoppings da babilônia: não existemponte além demuretas guaritas tiras do ouro bandeirantenada insiste subsiste uma vista ondenunca seencaixa ao mesmo tempo ao todo se situaonde mora o deserto é menos só que naAugusta
A escritura decanta. A música continua, mas a linguagem captura mais imagens. A épica linguística começa a se diluir em uma lírica paisagística, na qual até percebemos um rastro de crônica, bem mais nítido nos poemas que acompanham um ensaio fotográfico de Marcos Piffer sobre imagens de prédios e ruas de Santos que é publicado na edição de 2009 da revista Arquidecor.
Passa a contribuir seguidamente para a imprensa e a colaborar com outros artistas, escritores e intelectuais, tanto em Santos como em São Paulo, com destaque para a parceria intelectual com o compositor Gilberto Mendes, criador do Festival de Música Nova, que transformou Escorbuto em música.
Vai também para a Internet, escrevendo e publicando principalmente em seu perfil no Facebook. Nos textos curtos do mural e nos comentários sobre ícones culturais, seu texto tornou-se ainda mais lírico, ainda que mais irregular devido à instantaneidade do meio. Publica em sites como o Cronópios e aqui na Revista Pausa textos mais longos e homenagens a escritores como Clarice Lispector, Jean Genet e outros.
Flávio Viegas Amoreira abre a coletânea com 4 contos, nos quais a voz narrativa se desloca entre a primeira e a terceira pessoa, como um “ele de nós”. Nestas histórias mais longas, o mar e o oceano retornam como imagem principal e objetos de veneração e elegia, a exemplo do conto que abre o livro: Apaixonado de mar, cujo parágrafo de abertura retoma em nova chave o manifesto de Escorbuto:
Parecia ter vida nada perigosa; as palavras eram-lhe estrangeiras, se não poesia, perdia a noção dos fatos quando mudava um caminho, era um peregrino desses que pousam em choupanas solteiras da vizinhança.
Seguem os textos Stallone, a pândega e o pederasta, O gato de Guima e Nazca. O cheiro de mar permanece em Stallone..., história de homoafetividade e sexo, temas espalhados em seus textos, principalmente Edoardo o ele de nós, mas também nos livros anteriores (“chuva no mar é desejo”, por exemplo, verso mântrico de Escorbuto). Nazca é o que mais mantém traços estilísticos da escrita anterior, “a ruptura como dinâmica, não ortodoxia, autonomia pressupondo”, como em sua frase inicial.
O gato de Guima surge como ponto alto de toda a obra do autor, pelo menos em uma primeira leitura. Nele, seu estilo se aprimora e todos os assuntos acima vão se relacionando, principalmente o mar como tema narrativo e a invenção linguística. A solução que sintetiza estes dois aspectos saiu bem a Italo Calvino: o autor traz para a trama o gato de Guimarães Rosa, inventor de linguagem, o que permite transformar em narrativa o próprio ato inventivo da escrita. A abertura do conto, que conclui este artigo, mostra isso em uma escrita de eficácia literária e qualidade estética.
Pierre Ennui era filho do cônsul nessa galheta concavada do oceano: o porto era puro vinagre, ferruginoso: olhando, um passo descortinava do seu edifício, sobreondas, uma imensitude que parecia levar até Estrasburgo sem escalas. Tornou à Renânia: escrevemos um livro sé de e-mails, isto é, cartas, minhas afeições são impressas na pasta, meus documentos em Arial Black gozam da perenitude dum site, esse diário que vai além dos blogs. Sites são horas, blogs segundam. Te digo hoje , Pierre: lembra quando pensavas que o felpudo gato de Guimarães Rosa soprava-lhe neologismos caídos da mais pura metafísica? Aquele homem de gravata-borboleta ali acariciando todas as letras alfabéticas e o gato a fiar conjecturas sobre suas propriedades rumorejantes. Meu gato são os contos do velho Guima, por eles assalto os significados que se refestelam em outro patamar de minha prateleira. Meu sertão é o mar donde espreito veredas; sabe assim, Pierre, teu Ennui traduz-se em angústia , tédio da não-presença. Dou-te um sentencioso Pascal e volta e meia responde-me com Montaigne: gosto de ti feito um burrinho pedrês. Toda intitulação merece a fantasia existente dum dia: nesse que te escrevo: roletes, cavilhas, caxinguelês do banhado, o roçado aqui se mede em milhas do manguezal às lingadas de sacarias de costas estivadoras. Bandeiras líberas são estandartes dos marinheiros em comitiva a outros-mundos rocinados. Ouvi o pianista Michael Kieran Harvey, neste quarto sou cosmopolita feito a beirada que diviso daquela ilha, o equidistante leito donde o farol da Moela sinaliza. O farol remete à terra firme, flutua no próprio sem-sentido navegante. Pois entre um cargueiro e outro veleiro remeto àquela vez em que vimos Liliom, de Fritz Lang. Morar no porto pousando entre a memória e os lugares que assentam os tempos aprisionáveis.
Pós escrito
Voltarei a alguns dos demais participantes da Geração Zero Zero em artigos futuros. Em uma primeira lida, dá para notar como anda alto o nível da literatura contemporânea do país.
Referências:
Flávio Viegas Amoreira
* Alessandro Atanes, jornalista, é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Servidor público de Cubatão, atua na assessoria de imprensa da prefeitura do município.
BRILHANTE
ResponderExcluirFLÁVIO VIEGAS AMOREIRA