PEQUENA CARTOGRAFIA DA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA:
Por Marcelo Ariel
Nesta minha cartografia estritamente pessoal, destaco agora os poemas de Daniel Faria, homônimo do poeta português já morto,mas servidor de uma poética de igual valor e densidade. Existe algo da força irônica dos metafísicos italianos aqui , acompanhado de um humor digno do melhor de Dino Buzatti e Cioran, sim, para quem não percebeu ainda, Cioran é um comediante trágico, na melhor tradição de Luciano ( o autor do Diálogo dos mortos). Os poemas de Daniel possuem uma conexão forte com os citados e o que relaciono a eles, também se conecta obviamente aos poemas dele, principalmente se observarmos o que pensa a imagética de seus poemas, o sentimento trágico da vida não é suavizado aqui, se o cineasta dinamarques Lars Von Trier escrevesse poemas seriam parecidos com estes do Daniel. Uma poética que nasce da energia da recusa e avança para o terreno pantanoso do que denomino raio x dos limites da crítica da razão cínica. Abaixo alguns poemas selecionados pelo autor:
Cavalos seriam deuses se desenhassem
acenda o cigarro,
agora que o sol vai caindo
guarde um resto de calor impreciso,
jogando as cinzas no chão.
observe as bailarinas que chegam,
a luz que se acende sobre elas,
a lona preta estendida como palco improvisado,
mas antes do espetáculo,
que provavelmente será uma bela merda,
vá para o hotel que te espera
caindo aos pedaços
e sob o ar condicionado, mastigando fritas geladas
somente então se pergunte
quando foi que o Medo chegou
(OitO-OlhOs entra na sala:
vem aqui na frente
pra que todos te vejam.
você está vendo,
o Medo?)
* * *
Sangue
de espelho líquido.
Os intermináveis gestos
opacos
da cidade que se joga
sobre os meus braços
como chuva
de cacos de vidro
meus olhos que afloram
como bolhas
de um lago translúcido.
o reflexo do seu sorriso
com uma gérbera no espelho
do elevador vazio.
Embriagar-se de vermelho
dos sinais, ser menos
o anônimo das ruas
rasgar a pele e tatuar o vento,
sumir do mapa –
um projeto de lucidez
infalível.
* * *
Andei comendo silêncio
Desde o dia em que nasci.
Ele se tornou um grudento
Novelo feito com teia de aranha
Preso na garganta:
Isso o que você vê
Envolvendo as palavras
Que saem de minha boca
Não são flores negras
Nem a contraluz de astros negativos.
Era pra ser um poema –
E nunca ficará pronto.
Triunfo
Foi ali mesmo
Em frente à fábrica de biscoitos
Triunfo
A garota passou sorrindo nos óculos
De astronauta
E cuspiu a granada
Na outra boca.
Os estilhaços se espalharam pelo corpo
E surgiu este porco-espinho
Que vocês agora espiam.
(Ele antes perguntei
A dois amigos se dali
Naquela paisagem vermelho-escuro
Debaixo do mato no calor infernal
No fedor de bolacha de morango
Qualquer um poderia
Dizer com certeza se o outro lado
Do deserto
Existia de fato ou era miragem
E o primeiro apontou o indicador
Para a própria orelha
Girando no sentido horário
E o outro, o terapeuta Oito-Olhos
Lamentou a devastação do
Eu girando como água no ralo da pia, sempre no mesmo lugar
Inconformado no seu narcisismo
E sentenciou:
Guerra é continuação
Do narciso por outros meios)
Cheguei em casa na dúvida
Se o deserto das bolachas Triunfo ainda existia
Alguém perguntou no dicionário
Qual seria a melhor palavra para cruzar
A fronteira
Caminho, ponte, trilha, istmo ou passagem
A palavra estava morta
Na ponta da língua.
Desterrado (Um LP)
Lado A (A situação hermética)
- Se você morrer hoje,
flamívomo,
veias de vidro,
hidromel,
Azar,
vai ficar rolando entre as pedras do caminho
sem descanso, um nome qualquer,
seu nome, estas agulhas continuarão
ferindo sua boca por dentro, até depois da morte.
este é o castigo, distraído.
os piratas chegaram pelas tubulações
junto com os grifos mercadores de sangue congelado
e levaram todas as letras,
mesmo as mais secretas, mesmo as trancadas nas gavetas,
mesmo as indefinidas meras manchas
de quando você pensava que era um estúpido insone
sonhando em ser a anemia de um poeta oriental.
Lado B (O hermético situado)
- com seriedade
ela punha a luva de borracha
o som era um gatilho
seco sobre a pele, as mãos ao alto
em oração ou assalto:
- só vai ser uma picadinha
(não sei porque, ela sorria)
Eu, Mazagão.
Advertência: isso não é lirismo, é história (mito). Mazagão foi uma cidade-fortaleza na guerra contra os infiéis. Não deu certo. O Imperador decidiu transferir a cidade, inteira, da África para a Amazônia. Os habitantes não podiam escolher, eram sujeitos ao (súditos). Até que Dona Maria, a Louca, dez anos depois de viagens e muita escrotidão, decretou: vocês estão livres de Mazagão. Depois disso, deles (os súditos) não se tem mais notícia.
Isso aqui também foi escrito segundo os parâmetros da metodologia da resenha surrealista, resenhei o livro de Laurent Vidal. E pensando bem é lirismo sim, o velho esquema romântico de despertar/simpatizar/confundir-se com os mortos. Correspondências.
de repente você acorda
há menos de cinco minutos pensava que desta vez sim
conseguiria dormir,
mas de repente você acorda,
abra a janela e
observe o rebanho que mastiga o capim
e o som dos dentes e da saliva no verde: rio fluindo
rio de pedras polidas fluindo no esquecimento,
mas você não
você não consegue dormir porque sabe que se esconde
numa fortaleza, tão complicada e delicadamente construída,
que se tornou sua prisão desconhecida, em que você trafega como um rato,
um rato com memória,
um rato com nome próprio.
a infantaria ainda não foi inventada, você tem que se virar
com estes canhões enferrujados e um crucifixo
fodeu,
eles estão lá fora, mais maneiros e manjados que você
desta vez você se fodeu.
você vegeta como um cão de guarda entre os muros de pedra
- e só agora te avisaram.
eis o plano de fuga:
o Imperador ordena, não a dor, a dor de cada um
que se foda, dançando entre os dentes, a dor, o grito que silencia,
o silêncio que se grita, foda-se, o Imperador ordena
tome conta dos seus pertences, do seu álbum de fotografias,
guarde com zelo o nome da família, vele pela memória de Mazagão,
tome a canoa e saia pela porta minúscula que se insinua
à beira-mar. e não exulte, você não vai afundar no Lethes.
você vai é parar no meio de ruínas
numa cidade bolorenta, sangrando à virgem que se arrombou
num terremoto daqueles, uma puta caçada por Sacerdotes,
uma órfã sem eira nem beira, um convento derrubado,
a porra de uma cidade fodida, é pra onde você vai.
e não se misture com seus habitantes,
até nesta merda de mapa você só está de passagem.
eis o plano de fuga.
- e só agora te avisaram.
depois, agora você vai se cagar no meio do mar,
rumo aos trópicos, aqueles mesmos
em que centauros comem o verdadeiro fruto proibido,
lá permitido (as mangas-rosas altas e saradinhas),
terra das grandes cachoeiras e dos carimbos.
mar, que belo e verde!
só se for na beira da praia, lá dentro
a pura monotonia, os dentes da maresia,
que absolutamente não canta, saltam do verde e liso mar
e ferem seus olhos, lambem seus dentes, apodrecem sua boca,
uma cloaca, lábios de labirintite.
me fodi de novo.
oh, quanto sal, são lágrimas de um boçal.
finalmente você chega à nova morada:
madeira podre, infestação de formigas, casas caindo,
chuva torrencial, medo dos canibais que inexistem
mesmo assim te mordem, roem dentro de sua cabeça,
e você ainda a preserva, a memória de seu passado
presente de rato com nome próprio.
- Dona Maria, a Louca, mudou de idéia,
reconhece em você a triste marionete nas mãos do destino,
esta bosta de metáfora com luvas negras e frases-feitas desenhadas,
há de liberá-lo, pode ir, o mundo é seu.
Sem título
A orquídea finge ser
Jesus plastificado
Como um galã esquecido
Dos filmes de sábado à noite,
Com o charme dos fumadores de haxixe,
Num convite estendido
Na pintura desbotada, azul.
A orquídea se faz passar
Por um bêbado que se emociona
Em lágrimas de cerveja
E se esquece da severidade imposta
Pela vida de imigrante e office boy
Ex-morador do zoológico de Brasília.
Atônitas, crianças
Que medem a distância das estrelas
Correndo com lanternas
Lêem Mein Kampf nos bueiros,
Livro em que a palavra
Deus é repetida mais de vinte vezes
Pelo autor que só tinha um testículo
(As crianças precisam atestar
O mal frente à inocência
Despetalada a cada dia):
As orquídeas colonizaram o mundo
Por meio de disfarces:
A imitação imperfeita
Das flores
Desdobra primaveras.
Não tenho minha Dicção
“Tempo é criança que chora
quando quebram a regra do jogo
e logo depois se esquece.”
Heráclito de Éfeso Tempo é jogo, ritmo
de flores indo e vindo
vozes na varanda
latas de cerveja sobre a mesa
(tempo é outro dia
outras latas
vazias entre as flores frias
e o cachorro, de salvo-conduto
vinha
vinha e caía –
tristes flores de Campinas).
Ou então, noutro lugar
os últimos bêbados
limpam mesas e cadeiras
com os garçons, cansados –
poesia social, merda de salário
solidariedade de bêbado
revolução de boteco
também sou verde por dentro.
(Bar fechado, mesa vazia, varanda -
Ninguém.) Agora
segundo o manual de instruções
acenda uma espiral
no círculo riscado em cinza
sobre a prateleira de alumínio branco
e florescerá a garrafa de vinho
com a gérbera amarela
à frente de um livro
Fragmentos do discurso amoroso neste momento de onde ela está, a cidade mais próxima a 18 horas de barco. Incomunicável. E putz naquele dia ela acendeu o cigarro debaixo do Ipê Amarelo, vocês não vão entender.)
Ou quem sabe ainda
sob o sol inclemente
à procura de cola de sapateiro
ou carona o que pintasse primeiro
tudo pra vencer o dia
vomitando versos
sobre as putas de Brasília
no sopão de 24 horas
ou talvez na praia suja
dois bêbados juram
que o saxofone do é o tchan
é o calabouço da cultura brasileira.
E hoje na varanda (dessa vez no décimo primeiro andar) você olha a Matrona de óculos escuros que olha o mendigo que olha a bolsa e uma citação a mais e o abismo olha dentro de você e hoje na varanda você debate com OitoOlhos s.a., o cara é pós-moderno e não sabe, na hora de rezar escolha o Salmo 32 não faça como o cavalo e o jumento que não conhecem freio e rédeas o texto saiu truncado (será boicote?), por uma nova etiologia (o texto saiu, truncado será boicote?): narcisismo sem ego.
Mas não, o calabouço
era apenas a sala de espera e
as vozes, as latas, os livros e as flores
sumiram de vista.
Você anda pela casa
como um caçador à procura de rastros e
o tempo diz: o rastro é você &
você nem tem dicção própria
pra reclamar.
A irmã siamesa da minha namorada
Quando eu conspirava com os pássaros bêbados do Jardim Oricellari, a irmã siamesa da minha namorada me fez uma visita. E eu nem sabia que minha namorada tinha uma irmã siamesa. Todo o ônus estético da cirurgia de separação dos corpos ficou por conta da tal irmã. Minha namorada é linda, pele elástica e suave, a sua irmã tem a metade direita da cabeça cheia de manchas vermelhas, a pele enrugada, como se ela tivesse passado por profundas queimaduras. A pupila de seu olho direito é prateada, quando ela fala soa como um dueto desafinado, porque sua voz é estranhamente dissociada em duas. A irmã siamesa da minha namorada se ofereceu para ser minha amante. Nela, eu poderia confiar cegamente, porque o sofrimento e a destruição levariam à virtude. Minha namorada, disse a sua irmã, tem seus momentos de maldade: a beleza leva a um tipo de inocência um tanto perversa. E eu sofreria muito por causa disso. Isso me soou estranhamente a um canto de sereia, ainda que lodoso, sacrificial. Afastei de mim o cálice, despertando para a lucidez do dia. (Mais tarde, descobri que a irmã siamesa de minha namorada tinha chegado no porta-aviões de Noé. Sua verdadeira intenção era bisbilhotar, descobrir como estávamos vivendo, nós, os seres marinhos viventes do dilúvio).
Possuído pelo nome
Eu não me lembro
Mas sei que estava lá
No dia da repartição dos nomes
Das parcelas de terra que a cada um caberia
O solo para pisar
E a terra que se reparte em água que se reparte
Em ar que se reparte em fogo que se
Reparte em alma
Que se respira.
Meu nome caiu em mim
Como alguém cai em si
Ao se apreender no nome doado
Onde antes havia gruta - voz gutural -
Mancha imortal surpreendida
Em traços inscritos em pedra
Que acenderam no corpo o sopro
Criador das imagens que são você
Seu você mais profundo
Abismo tão distante quanto as últimas constelações
Mas que é você, a quimera presa em seus ombros,
O pássaro rosa-azul, de motivos florais nas asas,
O pássaro que absolutamente não canta
Mas salta de seus olhos enquanto você dorme,
Aninha-se nas asas do Simurg.
É com este nome que lhe caiu como uma pedra
Como um soco na boca
Do estômago
Que você se depara no hipermercado
Com a mulher de dentes cinzentos
De quem mastigou cinzas de cigarro o dia inteiro
...
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