domingo, 11 de setembro de 2011


Por Marcelo Ariel

Nesta minha cartografia estritamente pessoal, destaco agora os poemas de Daniel Faria, homônimo do poeta português já morto,mas servidor de uma poética de igual valor e densidade. Existe algo da força irônica dos metafísicos italianos aqui , acompanhado de um humor digno do melhor de Dino Buzatti e Cioran, sim, para quem não percebeu ainda, Cioran é um comediante trágico, na melhor tradição de Luciano ( o autor do Diálogo dos mortos). Os poemas de Daniel possuem uma conexão forte com os citados e o que relaciono a eles, também se conecta obviamente aos poemas dele, principalmente se observarmos o que pensa a imagética de seus poemas, o sentimento trágico da vida não é suavizado aqui, se o cineasta dinamarques Lars Von Trier escrevesse poemas seriam parecidos com estes do Daniel. Uma poética que nasce da energia da recusa e avança para o terreno pantanoso do que denomino raio x dos limites da crítica da razão cínica. Abaixo alguns poemas selecionados pelo autor:



Cavalos seriam deuses se desenhassem




acenda o cigarro,


agora que o sol vai caindo


guarde um resto de calor impreciso,


jogando as cinzas no chão.


observe as bailarinas que chegam,


a luz que se acende sobre elas,


a lona preta estendida como palco improvisado,


mas antes do espetáculo,


que provavelmente será uma bela merda,


vá para o hotel que te espera


caindo aos pedaços


e sob o ar condicionado, mastigando fritas geladas


somente então se pergunte


quando foi que o Medo chegou










(OitO-OlhOs entra na sala:


vem aqui na frente


pra que todos te vejam.






você está vendo,


o Medo?)








* * *







Sangue


de espelho líquido.






Os intermináveis gestos


opacos


da cidade que se joga


sobre os meus braços


como chuva


de cacos de vidro






meus olhos que afloram


como bolhas


de um lago translúcido.






o reflexo do seu sorriso


com uma gérbera no espelho


do elevador vazio.






Embriagar-se de vermelho


dos sinais, ser menos


o anônimo das ruas


rasgar a pele e tatuar o vento,


sumir do mapa –






um projeto de lucidez


infalível.









* * *






Andei comendo silêncio




Desde o dia em que nasci.






Ele se tornou um grudento


Novelo feito com teia de aranha


Preso na garganta:






Isso o que você vê


Envolvendo as palavras


Que saem de minha boca


Não são flores negras


Nem a contraluz de astros negativos.






Era pra ser um poema –






E nunca ficará pronto.











Triunfo





Foi ali mesmo






Em frente à fábrica de biscoitos


Triunfo


A garota passou sorrindo nos óculos


De astronauta


E cuspiu a granada


Na outra boca.


Os estilhaços se espalharam pelo corpo


E surgiu este porco-espinho


Que vocês agora espiam.






(Ele antes perguntei


A dois amigos se dali


Naquela paisagem vermelho-escuro


Debaixo do mato no calor infernal


No fedor de bolacha de morango


Qualquer um poderia


Dizer com certeza se o outro lado


Do deserto


Existia de fato ou era miragem


E o primeiro apontou o indicador


Para a própria orelha


Girando no sentido horário


E o outro, o terapeuta Oito-Olhos


Lamentou a devastação do


Eu girando como água no ralo da pia, sempre no mesmo lugar


Inconformado no seu narcisismo


E sentenciou:


Guerra é continuação


Do narciso por outros meios)






Cheguei em casa na dúvida


Se o deserto das bolachas Triunfo ainda existia


Alguém perguntou no dicionário


Qual seria a melhor palavra para cruzar


A fronteira


Caminho, ponte, trilha, istmo ou passagem






A palavra estava morta


Na ponta da língua.











Desterrado (Um LP)


Lado A (A situação hermética)










- Se você morrer hoje,


flamívomo,


veias de vidro,


hidromel,


Azar,


vai ficar rolando entre as pedras do caminho


sem descanso, um nome qualquer,


seu nome, estas agulhas continuarão


ferindo sua boca por dentro, até depois da morte.


este é o castigo, distraído.


os piratas chegaram pelas tubulações


junto com os grifos mercadores de sangue congelado


e levaram todas as letras,


mesmo as mais secretas, mesmo as trancadas nas gavetas,


mesmo as indefinidas meras manchas


de quando você pensava que era um estúpido insone


sonhando em ser a anemia de um poeta oriental.










Lado B (O hermético situado)






- com seriedade


ela punha a luva de borracha


o som era um gatilho


seco sobre a pele, as mãos ao alto


em oração ou assalto:






- só vai ser uma picadinha






(não sei porque, ela sorria)








Eu, Mazagão.






Advertência: isso não é lirismo, é história (mito). Mazagão foi uma cidade-fortaleza na guerra contra os infiéis. Não deu certo. O Imperador decidiu transferir a cidade, inteira, da África para a Amazônia. Os habitantes não podiam escolher, eram sujeitos ao (súditos). Até que Dona Maria, a Louca, dez anos depois de viagens e muita escrotidão, decretou: vocês estão livres de Mazagão. Depois disso, deles (os súditos) não se tem mais notícia.






Isso aqui também foi escrito segundo os parâmetros da metodologia da resenha surrealista, resenhei o livro de Laurent Vidal. E pensando bem é lirismo sim, o velho esquema romântico de despertar/simpatizar/confundir-se com os mortos. Correspondências.









de repente você acorda


há menos de cinco minutos pensava que desta vez sim


conseguiria dormir,


mas de repente você acorda,






abra a janela e


observe o rebanho que mastiga o capim


e o som dos dentes e da saliva no verde: rio fluindo


rio de pedras polidas fluindo no esquecimento,






mas você não


você não consegue dormir porque sabe que se esconde


numa fortaleza, tão complicada e delicadamente construída,


que se tornou sua prisão desconhecida, em que você trafega como um rato,


um rato com memória,


um rato com nome próprio.






a infantaria ainda não foi inventada, você tem que se virar


com estes canhões enferrujados e um crucifixo






fodeu,






eles estão lá fora, mais maneiros e manjados que você


desta vez você se fodeu.


você vegeta como um cão de guarda entre os muros de pedra






- e só agora te avisaram.






eis o plano de fuga:






o Imperador ordena, não a dor, a dor de cada um


que se foda, dançando entre os dentes, a dor, o grito que silencia,


o silêncio que se grita, foda-se, o Imperador ordena


tome conta dos seus pertences, do seu álbum de fotografias,


guarde com zelo o nome da família, vele pela memória de Mazagão,


tome a canoa e saia pela porta minúscula que se insinua


à beira-mar. e não exulte, você não vai afundar no Lethes.


você vai é parar no meio de ruínas


numa cidade bolorenta, sangrando à virgem que se arrombou


num terremoto daqueles, uma puta caçada por Sacerdotes,


uma órfã sem eira nem beira, um convento derrubado,


a porra de uma cidade fodida, é pra onde você vai.


e não se misture com seus habitantes,


até nesta merda de mapa você só está de passagem.


eis o plano de fuga.






- e só agora te avisaram.






depois, agora você vai se cagar no meio do mar,


rumo aos trópicos, aqueles mesmos


em que centauros comem o verdadeiro fruto proibido,


lá permitido (as mangas-rosas altas e saradinhas),


terra das grandes cachoeiras e dos carimbos.






mar, que belo e verde!






só se for na beira da praia, lá dentro


a pura monotonia, os dentes da maresia,


que absolutamente não canta, saltam do verde e liso mar


e ferem seus olhos, lambem seus dentes, apodrecem sua boca,


uma cloaca, lábios de labirintite.






me fodi de novo.






oh, quanto sal, são lágrimas de um boçal.


finalmente você chega à nova morada:


madeira podre, infestação de formigas, casas caindo,


chuva torrencial, medo dos canibais que inexistem


mesmo assim te mordem, roem dentro de sua cabeça,


e você ainda a preserva, a memória de seu passado


presente de rato com nome próprio.






- Dona Maria, a Louca, mudou de idéia,


reconhece em você a triste marionete nas mãos do destino,


esta bosta de metáfora com luvas negras e frases-feitas desenhadas,


há de liberá-lo, pode ir, o mundo é seu.









Sem título







A orquídea finge ser


Jesus plastificado


Como um galã esquecido


Dos filmes de sábado à noite,


Com o charme dos fumadores de haxixe,


Num convite estendido


Na pintura desbotada, azul.






A orquídea se faz passar


Por um bêbado que se emociona


Em lágrimas de cerveja


E se esquece da severidade imposta


Pela vida de imigrante e office boy


Ex-morador do zoológico de Brasília.






Atônitas, crianças


Que medem a distância das estrelas


Correndo com lanternas


Lêem Mein Kampf nos bueiros,


Livro em que a palavra


Deus é repetida mais de vinte vezes


Pelo autor que só tinha um testículo


(As crianças precisam atestar


O mal frente à inocência


Despetalada a cada dia):






As orquídeas colonizaram o mundo


Por meio de disfarces:






A imitação imperfeita


Das flores


Desdobra primaveras.









Não tenho minha Dicção






“Tempo é criança que chora


quando quebram a regra do jogo


e logo depois se esquece.”


Heráclito de Éfeso Tempo é jogo, ritmo


de flores indo e vindo


vozes na varanda


latas de cerveja sobre a mesa


(tempo é outro dia


outras latas


vazias entre as flores frias


e o cachorro, de salvo-conduto


vinha


vinha e caía –










tristes flores de Campinas).


Ou então, noutro lugar


os últimos bêbados


limpam mesas e cadeiras


com os garçons, cansados –


poesia social, merda de salário


solidariedade de bêbado


revolução de boteco


também sou verde por dentro.










(Bar fechado, mesa vazia, varanda -


Ninguém.) Agora


segundo o manual de instruções


acenda uma espiral


no círculo riscado em cinza


sobre a prateleira de alumínio branco


e florescerá a garrafa de vinho


com a gérbera amarela


à frente de um livro


Fragmentos do discurso amoroso neste momento de onde ela está, a cidade mais próxima a 18 horas de barco. Incomunicável. E putz naquele dia ela acendeu o cigarro debaixo do Ipê Amarelo, vocês não vão entender.)


Ou quem sabe ainda


sob o sol inclemente


à procura de cola de sapateiro


ou carona o que pintasse primeiro


tudo pra vencer o dia


vomitando versos


sobre as putas de Brasília


no sopão de 24 horas


ou talvez na praia suja


dois bêbados juram


que o saxofone do é o tchan


é o calabouço da cultura brasileira.








E hoje na varanda (dessa vez no décimo primeiro andar) você olha a Matrona de óculos escuros que olha o mendigo que olha a bolsa e uma citação a mais e o abismo olha dentro de você e hoje na varanda você debate com OitoOlhos s.a., o cara é pós-moderno e não sabe, na hora de rezar escolha o Salmo 32 não faça como o cavalo e o jumento que não conhecem freio e rédeas o texto saiu truncado (será boicote?), por uma nova etiologia (o texto saiu, truncado será boicote?): narcisismo sem ego.


Mas não, o calabouço


era apenas a sala de espera e


as vozes, as latas, os livros e as flores


sumiram de vista.


Você anda pela casa


como um caçador à procura de rastros e


o tempo diz: o rastro é você &


você nem tem dicção própria


pra reclamar.








A irmã siamesa da minha namorada




Quando eu conspirava com os pássaros bêbados do Jardim Oricellari, a irmã siamesa da minha namorada me fez uma visita. E eu nem sabia que minha namorada tinha uma irmã siamesa. Todo o ônus estético da cirurgia de separação dos corpos ficou por conta da tal irmã. Minha namorada é linda, pele elástica e suave, a sua irmã tem a metade direita da cabeça cheia de manchas vermelhas, a pele enrugada, como se ela tivesse passado por profundas queimaduras. A pupila de seu olho direito é prateada, quando ela fala soa como um dueto desafinado, porque sua voz é estranhamente dissociada em duas. A irmã siamesa da minha namorada se ofereceu para ser minha amante. Nela, eu poderia confiar cegamente, porque o sofrimento e a destruição levariam à virtude. Minha namorada, disse a sua irmã, tem seus momentos de maldade: a beleza leva a um tipo de inocência um tanto perversa. E eu sofreria muito por causa disso. Isso me soou estranhamente a um canto de sereia, ainda que lodoso, sacrificial. Afastei de mim o cálice, despertando para a lucidez do dia. (Mais tarde, descobri que a irmã siamesa de minha namorada tinha chegado no porta-aviões de Noé. Sua verdadeira intenção era bisbilhotar, descobrir como estávamos vivendo, nós, os seres marinhos viventes do dilúvio).









Possuído pelo nome




Eu não me lembro


Mas sei que estava lá


No dia da repartição dos nomes


Das parcelas de terra que a cada um caberia


O solo para pisar


E a terra que se reparte em água que se reparte


Em ar que se reparte em fogo que se


Reparte em alma


Que se respira.


Meu nome caiu em mim


Como alguém cai em si


Ao se apreender no nome doado


Onde antes havia gruta - voz gutural -


Mancha imortal surpreendida


Em traços inscritos em pedra


Que acenderam no corpo o sopro


Criador das imagens que são você


Seu você mais profundo


Abismo tão distante quanto as últimas constelações


Mas que é você, a quimera presa em seus ombros,


O pássaro rosa-azul, de motivos florais nas asas,


O pássaro que absolutamente não canta


Mas salta de seus olhos enquanto você dorme,


Aninha-se nas asas do Simurg.






É com este nome que lhe caiu como uma pedra


Como um soco na boca


Do estômago


Que você se depara no hipermercado


Com a mulher de dentes cinzentos


De quem mastigou cinzas de cigarro o dia inteiro


...

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