PEQUENA CARTOGRAFIA DA POESIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA:
Por Marcelo Ariel
Dando sequência a esta minha cartografia, vamos agora para os poemas de Maiara Gouveia, uma pulsão erótica que não descarta uma laicização do sagrado é uma das caracteristicas da poética de Maiara. Alguns poemas me lembram exercícios da psicomagia de Jodorowski, onde a metáfora é um poder, não de sublimação, mas de intervenção na realidade, como a extensão de um furor que nada tem a ver com o furor abstrato da razão, mas com a transfiguração de estados perigosos do ser, de um Pathos semelhante ao dos rappers, sem utilizar a sintaxe do R.A.P. mas dentro de sua esfera de contemplação ativa do mundo. Como nos expressionistas alemães Maiara alia a esta transfiguração, a evocação de uma simbologia que é um símile de seu mundo interior resignificado pelo exterior, como um Uroboro em chamas, aí está talvez, uma das funções míticas do poema: Falar do mundo como o lugar onde a metáfora e o símbolo são instrumentos de abertura para uma possível intervenção, cujas linhas de força, apontam todas para o encontro com o Outro, não o Outro de Rimbaud, mas com o Outro-Outro do Speculum Harmonium.
Se a palavra flor abrisse inflorescências. /Se
em cada face glabra, abracadabra: /outra
forma desdobrada. /E se nada se quebrasse,
/nem o baço, nem a margem de manobra.
/O abraço ficaria pendurado/ na miragem,/
onde a cabra entornaria o seixo, /a despencar
no grito (espaço aberto)/ e a garganta viraria
tempo /– um tempo de retorno – /até que o
verbo fosse inverso: /substância,
inflorescência.
LUZ EXTINTA
Primeiro, eu digo: fio de fumo.
E descemos.
À luz interrompida, o coro.
Divino enfurnado entre as coxas – extensões do escuro.
(Ou fagulha alojada no magma oculto).
Sorteio. O pano dos seios. E a pele-lençol.
Libações aos balidos. Pés e torsos.
Murmúrios noutras línguas. Lanhos.
Nome interrompido. Saliva de Brômio.
E manhãs que assustam.
O IMPERADOR
Substância
Ele não transcende
Esta forma provisória
Mas leva as maçãs de ouro
Ao jardim − herói solar
E ensina que a beleza
Não é um golpe de sorte
Moeda
Reina sobre o concreto
O visgo de ouro da pedra
O que emana do petróleo
Poder que fascina tanto
E mesmo com mãos atadas
Metralha e metralha
Com efeito vibratório
Ou o peso da Palavra
Quebrada no meio de um crânio
Não é um golpe de sorte
Mas leva maçãs de ouro
AUSÊNCIA
1.
Antes mesmo de ser, ele fere – íntimo desejo.
Morde por dentro a finitude
& chuta
(pés de bode, cabeça de carneiro)
Aqui, o corte, uma fenda:
eu te procuro nesta fresta.
2.
Não escorre entre as coxas, no abandono,
o filho do espanto, desfeito, viscoso:
ausência,
antes mesmo de ser.
3.
Clareira do sangue mais sujo.
Costura ESTE gesto ao grito.
E a seta que se lança à máxima estrela
(uma estrela do barro)
entorna só
memória de um querer
encolhido
latente.
4.
Não dedilho o abandono.
Não reflito.
Não mergulho
na atmosfera da fuga.
Sobrevoo a pauta.
Pura matéria, sem alma,
inteiramente escura:
musical.
5.
Eu te pertenço mais quando se apaga
a chama de uma vela.
Eu te perco no eterno,
e te procuro aqui, nesta fresta.
Respiro baixinho,
morro devagar.
6.
AGORA, minha lua de fogo incendeia os corpos petrificados
avança pelas trilhas de Saturno
resgata palavras no ventre da baleia
gargalha e fecunda a fossa
onde Nanã apanha o medo.
7.
Eu virei com as mãos a caixa de dádivas:
eram males também.
Tive a pressa de um herói, entornei manhãs, entornei
a Constelação de Órion
no centro do mapa.
Entornei o Arqueiro.
E ele feriu o calcanhar
do meu bicho do espanto.
Fincou na massa espessa do Acaso
a seta que se lança
à máxima estrela.
DOIS, A SACERDOTISA
Figurino
O losango rubro
De nobre tecido
E a mitra ou tiara
Fronteira com o Céu
Ação & arroubo
Sob o manto azul
Cenário
E a mitra ou tiara
Fronteira com o Céu
Em toda a América
Em Chihuahua
O vento não cura
Nem suga o cuspe-esperma
Na mulher de Moçambique
E há o lençol-navalha
E os dentes na cortina
E os banhos que nunca limpam
“Eu sou a visão do Mundo
Ninguém vive sem Estamira
Isso até me orgulha
E me deixa triste
Esses astros negativos
Sujam todo o espaço
E querem-me. Querem-me”
Em toda a América
Em Chihuahua
O corpo − terreno baldio
Pois a língua é masculina
Em toda a América
Em Chihuahua
AGAR
رجاه
ainda foge.
Ainda que o Deserto seja o Outro.
O Filho perfura a terra.
Explode em duas torres.
Há línguas em toda parte
& também cabeças – escombros.
UM, O MAGO
1.
No começo espreme a força
Do Universo em uma taça
Extremos se tornam claros
O enigma do baralho
& apetrechos da arte
Entre o artífice e a mesa
Bastão & moeda:
O poder e a vaidade
& outros disfarces
A fraude e a charlatanice
Entre as frestas da potência
E da intuição metódica
Talhada, sim, para o enigma
Da flor: outra orquídea
Ou esta vontade alquímica
Que faz de uma vida a vida
ONZE, A FORÇA
E o belo apodrece e engasta
Até emergir noutra face
Os frutos da força bruta
Esparramados pelo vento
À beira do mar & bárbara
A túnica rubra − um cardume
À beira do mar − o Centauro
Ventríloquo do vento − O vento
À beira do mar − o homem
Entre a rede & a gaivota
Aprisionados pelo âmbar
O que empedra − empedra
Em torno da água & do Sol
E a Força − um redemoinho
Até alagar outra face
ACENO
as gaivotas são pedaços de lenço sujo, roberta ferraz
e o marulho fende a memória
na concha das mãos
estátuas de sal
no suor friíssimo:
escamas de peixe
medeias em fuga
cabelos vivos
no côncavo dos séculos
(a música)
de águas-medusa
guelras
ou ábaco líquido
(a mística do cálculo)
em ondas, em orlas
linhas tortas inúteis
onde o livro-transparência
arde
até os rins.
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