sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Alessandro Atanes, para o Porto Literário

Tenho escrito aqui sobre algumas histórias de horror: a entidade que parte do porto da Província de São Paulo para aterrorizar o narrador do conto O Horla em Paris; as descrições de guindastes e mecanismos portuários como bestas no romance Navios Iluminados e nas pinturas de La Boca do portenho Quinquela Martín (imagem); o autoritarismo latino-americano como herdeiro e seguidor do nazismo e da industrialização da morte na obra de Roberto Bolaño; o terror metafísico de Marcelo Ariel no canto Caranguejos aplaudem Nagasaki, dedicado a colocar na História as vítimas da tragédia de Vila Socó.

I
Entre outras leituras que alimentaram estes e outros ensaios, está a do livro O Redemunho do Horror, de Luiz Costa Lima, professor titular de Literatura Comparada da PUC-RJ, que venho relendo. Em sua nota pessoal sobre o tema, o autor afirma que o “texto ficcional, em vez de dar as costas à realidade, a dramatiza e metamorfoseia”, isto é, cria uma distância da realidade da qual podemos observá-la e compreendê-la.

Encontro agora na releitura uma passagem em que Luiz Costa Lima discute as diferenças entre a ideia de horror na América e na Europa, ainda que isso não signifique que “um bloco não possa conter manifestação do horror propiciada pelo outro”. Ela é ótima para se dar início a uma nova rodada de comentários sobre esta relação entre fascismo europeu e ditadura latino-americana cuja tessitura na obra de Roberto Bolãno tento registrar:

... o horror nas terras marginais [América do Sul, Ásia, África] não era idêntico ao gerado na Europa desenvolvida e nos Estados Unidos. Ao passo que o primeiro é basicamente o horror provocado por condições sociais que favorecem a violência física e relaciona-se com a dependência, o atraso e a instabilidade político-econômica, o segundo, como já se mostra no Madame Bovary (1857), é motivado pelo tédio, pela angústia, pela falta de sentido de uma ambiência no entanto tranquila...

Em seguida o autor afirma que Samuel Beckett (1906-1989) seria o outro lado, o do “mal-estar psíquico”, desse horror europeu, e afirma a exceção do horror nazista, exemplo que demonstra o quanto a “estabilidade das instituições metropolitanas é relativamente frágil”.

Mais à frente, quando ressalta que um bloco pode conter manifestações de horror do outro, nomeia Jorge Luis Borges, “este Kafka que alquimiza a angústia em um jogo de xadrez”, cuja obra se afasta do paradigma do horror latino-americano.

II
As ligações entre Borges e Bolaño já vem sendo apontadas por vários críticos e esta é mais uma: Borges, com seus labirintos, charadas e humor, se afasta tematicamente do paradigma do boom latino-americano (pensemos, por exemplo, em O Outono do Patriarca ou no Cem anos de solidão de Gabriel García Marquez).

Assim também faz o chileno Roberto Bolaño. Para tratar do horror das ditaduras, seus assassinatos, torturas e desaparecimentos, ele não construiu seus livros em torno da ideia de testemunho, majoritária nos relatos sobre as ditaduras, no qual um sobrevivente, geralmente um ex-preso político, relata o que de fato ocorreu nos porões dos regimes do Chile, Brasil e Argentina, tanto que no país de Borges os relatos pessoais foram considerados provas formais nos tribunais que condenaram torturadores e dirigentes do regime.

Ainda que extremamente pessoal, a narrativa de Bolaño é voltada para expressar uma América Latina angustiada com o passado recente das ditaduras, da conta da recessão dos anos 80 e da experiência de laboratório neoliberal dos anos 90, uma condição de contínua instabilidade social e política que naturaliza – de forma mais incisiva na ditadura – a morte e a tragédia social. Os personagens de Bolaño expressam esta condição de latino-americanos maltratados em seu próprio continente.

Em Noturno do Chile, uma artista chilena casada com um norte-americano promove saraus em sua residência; enquanto isso, seu marido, na verdade um agente da CIA, tortura pessoas no porão. Outro romance, Estrela distante, traz um poeta que é um piloto da força aérea chilena que escreve com fumaça no ar e promove exposições de fotografias de corpos de poetas mulheres assassinadas por ele mesmo.

Em La literatura nazi en América, série de biografias inventadas, um dos biografados do livro é um escritor brasileiro que sonha fazer parte dos esquadrões da morte para assassinar Rubem Fonseca. No romance póstumo 2666, o chileno relaciona um autor alemão com uma série de assassinatos de mulheres em Santa Teresa, no norte do México; a ocupação de uma universidade mexicana pelo exército na década de 60 é narrada em primeira pessoa no romance Amuleto por uma uruguaia trancada em um banheiro do quarto andar do prédio das Letras, no qual memória e alucinação se entrelaçam. Em um dos contos de Llamadas telefónicas dois policiais lembram quando eram jovens guardas em uma delegacia, eram os dias seguintes ao golpe contra Allende. Entre uma série de estudantes “radicais” detidos, eles reconhecem um colega da escola e o liberam.

III
Pelas sugestões dos títulos e das situações descritas acima, dá para dimensionar como Bolaño circula entre o horror psíquico europeu e o horror físico latino-americano com desenvoltura, o que permite pensar na ideia de continuidade – ou herança – entre o nazismo e o nosso autoritarismo.

A própria ideia de herança é ilustrada pelo autor na cena, também de um dos perfis inventados de La literatura nazi..., em que o próprio Adolf Hitler, em uma audiência pública nos anos 30, elogia a beleza de uma menina latino-americana, uma argentina ainda bebê cuja mãe, uma rica e conservadora escritora, em viajem pela Europa, é levada a uma audiência com o líder alemão. A cena é a seguinte:

Em 1929, enquanto o crack mundial obriga Sebastián Mendiluce [o marido de Edelmira] a retornar a Argentina, Edelmira e seus filhos são apresentados a Adolf Hitler, que pegará a pequena Luz no colo e dirá: “É sem dúvida uma menina maravilhosa”. Fotos são feitas. O futuro Führer do Reich causa na poetisa argentina uma grande impressão.

Pós Escrito
A menina, Luz Mendiluce, assim como a mãe, adota a carreira literária e a simpatia pelos governos de caráter fascista, que defende publicamente. É representante de parte da população da Argentina, e também do Brasil, que manifestava e continuou manifestando por muito tempo simpatia pelo nazismo.

Assim como a mãe, Luz também recebeu um perfil de Bolaño. Ali ele informa ainda que a escritora teria guardado a foto com Hitler por toda a vida. Podemos considerar a cena como um “batismo”, durante o qual Hitler repassaria à menina, representante de nossas elites econômicas – e também culturais – todo aquele horror que eclodiria na década seguinte lá e a partir dos anos 60 aqui.

Referências:
Luiz Costa Lima. O redemunho do horror: as margens do Ocidente. São Paulo: Planeta, 2003.

Roberto Bolano. La literatura nazi en América. Barcelona, Espanha: Seix Barral, 2008 (1ª ed 1996).

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