quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Alessandro Atanes

Um dos grandes desafios da ficção, escreve a ensaísta argentina Beatriz Sarlo, é ir aonde não chega a experiência humana. Ela trata disso ao analisar a literatura produzida sob o cárcere dos regimes militares da América Latina e a impossibilidade do relato de testemunho de dar conta de toda a experiência da prisão, pois só completaram o percurso os que foram torturados até a morte ou “desaparecidos”. Assim os relatos dos sobreviventes acabam sempre “incompletos”. Daí a defesa da ficção como busca de significados e a afirmação de que só ela pode chegar a alguns lugares a fim de iluminar (ainda que indiretamente) a trajetória humana. Assim ela encerra seu livro Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva:

A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados [pela reflexão sobre a sociedade], nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.

Essa estratégia de se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo, é o que move Nawal, protagonista de Incêndios, texto de Wajdi Mouawad que o grupo teatral mexicano Compañía Tapioca Inn apresentou nos dias 6 e 7 no galpão do Coliseu durante o Mirada, o Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, que vai até o dia 15.

Em um encenação teatral, as relações entre experiência e reflexão se complicam ainda mais pois elas são mediadas pelo corpo do ator, corpo de dupla ação que veicula a experiência dos personagens ao mesmo tempo em que dá voz ao texto. Em Incêndios isso se complica ainda mais pois Nawal, uma mulher que passou os últimos anos de vida sem falar nada, volta a ter voz durante a leitura de seu testamento por seu advogado. Ele entrega duas cartas a seus filhos, os gêmeos Júlia e Simón, endereçadas ao pai deles, que achavam que estivesse morto, e a um irmão que nem imaginavam que existisse. O testamento é claro, só entenderão a mudez voluntária da mãe quando as engrenagens de sua história começarem a ser movidas.

Júlia, professora de matemática em meio a um doutorado, busca imediatamente compreender a nova situação e parte para o Líbano, terra natal de sua mãe, em busca de seus traços deixados naquela terra durante as guerras e massacres do final dos anos 70. Ali, ela descobre que Nawal foi impedida pela própria mãe de criar o filho de uma gravidez fora do matrimônio e a criança acabou em um orfanato. No dia em que o bebê nasce, Nawal ouve da avó algo assim: “Saia daqui, aprenda a ler, a escrever, a fazer contas e a pensar. Quando souber volte para cá para escrever meu nome em minha tumba” (foto).

Júlia assim vai reconstituindo a trajetória de sua mãe, mulher que se torna lenda quando retorna à aldeia natal para escrever o nome da avó no túmulo. Ao enfrentar os homens do local em busca de seu filho, Nawal ganha a admiração das mulheres da região e uma delas, Sawda, a Mulher que Canta, pede para acompanhá-la em troca de ensiná-la a cantar. Ao longo dos anos, as duas vagam entre campos de refugiados, conflitos (foto abaixo) e prisões até que se confundem e se transformam em lendas.

Seu filho, o que os gêmeos não sabiam da existência, corta o país em direção contrária em busca da mãe. Só que acabam em lados opostos. Em sua peregrinação pelo deserto, torna-se franco atirador e, em seguida, torturador e, quando Nawal é presa, passa a tortura-la e violenta-la repetidamente, até que ela engravida (anos mais tarde, a própria Nawal, já uma advogada vivendo na América, faria parte do tribunal internacional que condenaria o criminoso).

O diretor da peça e adaptador para os palcos mexicanos, Hugo Arrevillaga, descreve assim o espetáculo no site do grupo: “Partindo do mito de Édipo e o levando aos campos de batalha do Oriente Médio, Wajdi Mouawad elabora uma tragédia contemporânea, gerando um texto incendiário que nos deixa completamente vulneráveis a nós mesmos, a nossa memória, a nossos medos, dúvidas e certezas, mas com a possibilidade de esperança como último ato de justiça e redenção”.

Simón já está atrás de Júlia e os dois acabam por descobrir juntos que o irmão que não sabiam da existência e o pai que achavam morto eram a mesma pessoa. Eles chegam juntos à prisão e juntos entregam as cartas, uma de amor ao filho e outra, um acerto de contas, ao torturador, lidas uma em seguida à outra (nesse momento, o texto das cartas é falado pela atriz que interpreta Nawal, Karina Gidi, foto). O tom é sublime, ainda que trágico, como se estivéssemos presentes a uma encenação na Grécia antiga, à espera do efeito catártico que, enfim ocorre com a leitura final de carta, entregue pela advogado a Simón e Júlia após terem concluído a busca pelo pai/irmão:

Simón,
Chora?
Se chora, não seque suas lágrimas
Porque eu não seco as minhas.
A infância é uma faca cravada na garganta
E você soube arrancá-la.
Agora, deve voltar a aprender a engolir saliva.
Às vezes é um ação bem difícil.
Engolir saliva.
Agora, há que reconstruir a história.
A história está em pedaços.
Docemente
Consolar cada pedaço
Docemente
Aliviar cada lembrança
Acalentar cada imagem.
Júlia,
Sorri?
Se sorri, não termine seu riso
Porque eu não termino de sorrir
É o riso da raiva
Das mulheres caminhando juntas
Seu nome seria Sawda
Mas esse nome ainda é, apenas em pronunciá-lo,
Com cada uma de suas letras,
Uma ferida sangrando no fundo de meu coração.
Ria, Júlia, ria
Não permita que ninguém diga quando passe
Lá vai
A menina de olhar triste
Não fui generosa
Seu coração permaneceu fechado
Ria,
Nós,
Nossa família,
As mulheres de nossa família estão consumidas pela raiva.
Eu sentia raiva da minha mãe
Assim como você sente raiva de mim.
E assim como minha mãe sentia raiva da sua.
Deve-se romper o fio.
Júlia, Simón,
Onde começa a história de vocês?
No nascimento?
Então começa no horror.
No nascimento de seu pai?
Então é uma bela história de amor.
Mas se voltarmos para trás,
Talvez descubramos que essa história de amor
Tem sua origem no sangue, no estupro
E que por sua vez
O sanguinário e o violador
Têm sua origem no amor.
Assim que,
Quando lhe perguntarem sua história,
Digam que sua história, sua origem,
Está no dia em que uma jovem
retornou a sua aldeia para escrever ali o nome de sua avó
Nazira sobre sua tumba.
Aí começa a história.
Júlia, Simón,
Por que não lhes falei disto?
Há verdades que não podem ser reveladas, mas descobertas.
Vocês abriram o envelope, vocês romperam o silêncio
Escrevam meu nome sobre a pedra
E ponham a pedra sobre minha tumba.
Sua mãe.

Ser trágico, mítico, Nawal consegue reunir experiência e compreensão, degradação e esperança, violência e amor. Incêndios (trailer abaixo) continua queimando dias e dias após a sessão.



Em seguida, o trailer do filme:


Ficha técnica 
Texto: Wajdi Mouawad
Tradução para o espanhol: Humberto Pérez Mortera
Direção e adaptação: Hugo Arrevillaga
Assistência de Direção: Anabel Caballero
Coprodução: Tapioca Inn e Secretaría de Cultura de La Ciudad de México
Com: Karina Gidi, Pedro Mira, Rebeca Trejo, Jorge Léón, Alejandra Chacón, Javier Oliván, Concepción Márquez, Guillermo Villegas
Cenografia e Iluminação: Auda Caraza & Atenea Chávez
Vestuário: Mario Marín del Río
Música Original y Musicalização: Ariel Cavalieri, Carla Borghetti y Hugo Arrevillaga
Ilustração: Manuel Monroy
Design Gráfico: Miguel Durán
Assistência de Iluminação: Roberto Paredes

1 comentários:

  1. Excelente - ainda bem que assisti - pois descreve detalhamente todo o espetaculo (spolier) em texto não assinado.

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