terça-feira, 4 de setembro de 2012

Alessandro Atanes

Em um texto de 2006 apresentei aos leitores da coluna Porto Literário descrições do escritor norte-americano Waldo Frank (1899-1967) sobre Buenos Aires. Ele esteve na capital da Argentina em 1929 durante uma viagem por cidades latino-americanas cujo objetivo era se aproximar de intelectuais e, assim, reforçar os laços culturais entre o Norte e o Sul do continente, uma forma de evitar que as relações entre os dois lados pudessem “se deteriorar cada vez mais”. Ele passa por Havana (Cuba), Rio de Janeiro, São Paulo, Montevidéu e Buenos Aires (esteve também em Lima, onde conheceu José Carlos Mariátegui, importante pensador peruano do século XX, também autor de revistas, mas não sei se foi na mesma viagem). Além disso, o texto noticiava que nessa viagem, após percurso de carro entre o Rio e São Paulo, Frank desce a Serra para embarcar em um navio em Santos em direção ao Sul.

Aquele texto contava também que na passagem pela capital argentina Frank teria feito Victoria Ocampo (1890-1979) ter a ideia da criar a revista SUR (Sul). Na verdade ele foi um interlocutor da intelectual portenha. E aqui começa o tema de hoje. Editada entre 1931 e 1992, a longeva revista contou com colaborações de um bom número de gente entre os grandes da Literatura e das Artes do século XX. Nos índices de apenas três edições da minha estante leio Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Albert Camus, Júlio Cortázar, Graham Greene, Aldous Huxley, André Malraux, Eduardo Mallea, Ezequiel Martínez Estrada, Thomas Mann, Octavio Paz, Alfonso Reyes, Francisco Romero, Ernesto Sábato, Paul Valéry, Stravinsky, Alejo Carpentier, Ángel Rama, Augusto Roa Bastos, Eisenstein. De outra leitura, cito também García Lorca e Ortega y Gasset.

Fonte: Soroche y Resaca
Waldo Frank (à esquerda) em Mar del Plata, Argentina, em 1930, acompanhado por María Rosa Oliver (1898-1977), escritora feminista fundadora da Unión Argentina de Mujeres, Victoria Ocampo e Eduardo Mallea, intelectual, diplomata e político, também integrante de SUR
Um destes números da SUR é a primeira antologia da revista, publicada em 1971, adquirida durante férias em maio. Chega a vez de ler o que a coletânea trazia e, após apresentação da própria Ocampo, o primeiro ensaio: La Selva, de Waldo Frank, texto sobre o Brasil publicado originalmente em 1931, como colaboração no primeiro ano de vida da revista. A escolha de La Selva para abrir a coletânea é significativa   do apreço da editora da revista pelo autor norte-americano morto então há quatro anos.

A argumentação de La Selva é carregada do determinismo racial que marcou todo aquele momento entre guerras, antessala da ascensão dos fascismos e do holocausto. No pensamento, esses determinismos geográficos e históricos acabam por ligar as condições dos povos à tábua do tempo e das intempéries - o que na verdade só justifica ideologicamente a afirmação implícita de que só se pensa em alguns países. Enfim, mesmo sendo um homem que podemos dizer progressista, Frank considerava as raças diferentes. E é isso mesmo que o interessa. Ele vê negros, brancos e mestiços nas cidades do Brasil que visita (pelos menos Rio, São Paulo e Santos). Para ele - devemos lembrar que era um escritor refletindo em busca de respostas, em um momento delicado da democracia (a guerra civil espanhola estava para estourar) - as diferenças entre a escravidão do Brasil e dos Estados Unidos permitiam que aqui houvesse - ou pelo menos se iniciasse - um entendimento ou aliança entre os dois povos com base na herança mestiça. Seria o início de fato da construção de um novo país, tendo a floresta tropical (La Selva) como matéria-prima. O tom do ensaio é o de quem repara em – ou torce para – uma ascensão irrefreável do Brasil no cenário internacional, desde que assumisse seu caráter e sua força: “Quando chegar essa hora e o Brasil deixe de ser um ‘mercado’ para se tornar uma verdadeira nação, então haverá algo novo – algo prodigiosamente intenso e belo – no mundo”.

Nota final.: Do acordo da nova nação, Frank não leva em conta o elemento indígena, para ele, irrelevante demograficamente. Mas isso é porque ele se concentrou no litoral, a viagem toda na verdade, mas a chegada ao Rio, Capital Federal, o trecho de carro até o centro de distribuição e concentração da riqueza da indústria e da agricultura, São Paulo, e de novo o mar com o embarque rumo a Montevidéu. O sertão, pelo que sei, não foi visitado por ele.

Raça Cósmica
Noto no pensamento de Frank um eco da visão do intelectual mexicano José Vasconcelos (1882-1959), que havia empreendido esforço semelhante poucos anos antes, em 1922, uma viagem pela América Latina na qual Santos também foi parte do roteiro, tendo Vasconcelos presenciado aqui um pregão na bolsa do café (como vimos em um texto também de 2006). Além dos relatos, suas viagens serviram para reunir elementos que deram origem à teoria da Raça Cósmica, livro que publica em 1925, no qual profetiza o nascimento de uma civilização em torno da floresta amazônica (La Selva, outra vez), em contrapartida ao Norte do continente, anglo-saxão (e outra nota: como é que fica o Quebec, que é francês e, por isso, latino, mas localizado no Canadá de ascendência britânica?, ou por outro lado, o tamanho da comunidade latina dos Estados Unidos, cada vez mais "chicano" ou "sudaca").

Os itinerários são os mesmos, e por outros motivos, a capital federal para os festejos do centenário da Independência, uma atividade em uma universidade de São Paulo e, outra vez, Santos, só que não por causa do porto, mas também por ser no início do século XX um balneário onde se podia fazer um passeio pela praia e visitar um pregão da Bolsa do Café, o que fez o mexicano, ou até tentar a sorte em um dos cassinos da cidade.

Epílogo
Fica a pergunta: será que Waldo Frank conhecia os escritos de Vasconcelos? Difícil saber, mas o mexicano, por ter sido ministro da Educação e candidato à presidência em seu país, provavelmente era figura conhecida pelo norte-americano, homem interessado nas coisas de toda a América. De consolo, seis anos após ter sido noticiada: um único parágrafo, um rastro da passagem de Waldo Frank por Santos:

E ao pé da Serra do Mar [ele escreve Serro do Mare], quase trezentos pés abaixo, está Santos, o porto cafeeiro. Ali, centenas de mulheres sentam-se em um alpendre de pedra à prova de ratos. Seus olhos brilham na sombra aromática, e suas badanas cantam. Levam em cestas junto a si, no chão, suas crianças. Estas mulheres trabalham em longas mesas; com suas mãos cor marrom separam as bagas boas de café das ruins. De tempo em tempo, enquanto suas mãos tateiam, cantam em uníssono. Depois se inclinam, pegam seus filhos e os levam ao peito. Estão frescas e em calma sob o teto alto; e o cheiro forte do café se junta às suas palavras no vislumbre da porta, na rua.

Além da beleza da passagem (que espero não ter mal traduzido da versão em espanhol da SUR), o trecho tem importância por ser um raro registro do trabalho feminino no Porto de Santos. Será que Frank teve tempo suficiente para ver algo na cidade além dos embarques e do formigueiro de homens e máquinas, ou foi um acaso que o fez deparar-se com esse grupo de mulheres que mexem peças de roupas e cantam enquanto separam café, o mesmo café da Bolsa e da fazenda. O mesmo?

Referência
Waldo Frank. La Selva. SUR. Primera Antología de Ensayos. Buenos Aires, Argentina. Nº 329,  julho-dezembro, 1971.  Disponível em http://www.biblioteca.org.ar/libros/132739.pdf.

A força de Florinda, 25/10/2005. Nesta edição da década de 50 do romance Navios Iluminados (1937), Florinda é a única mulher nesta capa que acompanha um texto sobre personagem feminino no ambiente portuário.

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