Daniel Faria*
Com toda cautela diante de generalizações e construção forçada de identidades coletivas, façamos uma observação: uma coisa é estar em frente ao mar, outra é estar depois do mar. Quando se está depois do mar, o mar não é um caminho que leva para além do mar. A viagem foi realizada, não há mistérios para onde se ir. Porém, aí o mar se torna uma presença, no sentido pleno do termo. O mar se torna uma realidade bruta, avassaladora. E o mistério se refaz quando o mar fala conosco, não pela promessa de novos horizontes e sim pela sua intensidade. Se não vamos ao mistério, podemos mergulhar nele. O mar se apresenta como tempo, ou melhor: ritmo – e não mais passagem. Neste ritmo, vislumbra-se a eternidade pontuada por ciclos que retornam e por instantes de brilho repentino. O mar é então um espelho convulsivo de todos os tempos, quando acreditamos que vivemos depois do tempo.
Não estou querendo aqui generalizar algo sobre o Brasil como país situado depois do mar, essas reflexões me vêem da leitura de dois poetas marinhos contemporâneos. Talvez, a experiência social mais comum com o mar seja a da praia como espaço de lazer. No lazer, o mar é no máximo uma lacuna. Portanto, se falo de uma condição histórica, é a condição histórica da poesia – e não da sociedade. Não falo de uma determinante sociológica da sociedade brasileira. Até porque o encontro com o mar não prescinde da solidão.
O mar como ponto de chegada não é, necessariamente, algo de idílico. Certamente o poema marinho mais popular no Brasil é sobre o terror, a violência e brutalidade sob um sol indiferente: “estamos em pleno mar”, assim começa o Navio Negreiro de Castro Alves. O leitor do poema é assim como que lançado numa realidade, o mar é o absoluto. Não há, por exemplo, o cais de onde parte Álvaro de Campos. O mar devorou toda a realidade: inclusive o céu é marinho, as constelações são líquidas. E está na própria poesia, que é orquestrada com selvageria pelo mar. Está no próprio poeta, que diz ter bebido o mar. Em meio a essa imensidão sublime, o navio negreiro vaga sem direção, em alta velocidade, tentando fugir, evitar o canto do poeta.
Existe algo neste oceano que ali não deveria estar, uma cena “infame e vil”, um pesadelo que não mais deixará o poeta em paz. Homens negros como a noite dançando, mas uma dança de espectros sobre um mar de sangue. O poeta se revolta, porque o mar sublime assiste a tudo impassível, com a mesma impassibilidade de Deus. Um silêncio terrível transforma o mar numa espécie de deserto. E o poeta encerra seu canto, não menos marinho por isso, com uma imprecação: que o mar se feche. Mas, se mar é o vinho amargo que o poeta bebeu, a fonte de sua própria língua, como o mar se fecharia sem que o poeta se calasse? Em Castro Alves, estar em pleno mar é estar em pleno desespero. E faço apenas um reparo: longe de impassível, o mar é revolto.
Por isso, se sairmos do tom épico do poema de Castro Alves, notamos que num primeiro momento mar é espelho (que o Brasil se veja nele, para enfrentar sua face mais terrível). Num segundo momento, pensando-se em momento mais como camada superposta do que como algo que separa um antes de um depois, o mar é espelho líquido que se bebe. Mar narcísico. Mar como sujeito dos sujeitos, onde o poeta se reconhece – se é que alguém pode se reconhecer ao ver um abismo verde abrir-se dentro de si. É um espelho que reflete não uma imagem, mas uma paixão. E nesse sentido, a imagem apaixonante no espelho marinho não é mero reflexo. É de carne. Mas, uma carne especial, pela qual circula sangue verde e salgado. Uma carne que frutifica.
Isso tanto em Marcus Accioly quanto em Flávio Viegas Amoreira. Que escrevem depois de Castro Alves – que escreveu depois do mar.
Marcus Accioly faz, em Narciso, um mergulho lírico. A épica se tinge de lirismo, ou, dizendo melhor, liquefaz-se em lirismo. Não há mais navios singrando o oceano e sim um cosmo oceânico em que o sujeito submerge. Mesmo para quem está fora do mar, não há exatamente um fora, porque o mar se espalha sobre a terra como voz e eco. O litoral já é oceano em sua voz que chama o sujeito e ecos que devolvem suas perguntas. O sujeito é oceânico e, mesmo em sua condição ínfima, reconhece o mar como seu espelho de Narciso.
Os poemas de Accioly são assim: estruturalmente especulares. Muitas vezes, um soneto é seguido por sua imagem invertida. Porém, não estamos diante de um espelho impassível, transparente. Eis o que torna tão difícil capturarmos esse narciso. Há convulsões se dando no espelho, porque o espelho é embebido de humanidade. Fica uma pergunta: saímos de nós quando nos vemos no mar? Fica outra pergunta: estamos em nós mesmos quando trazemos um mar por dentro? O Ocidente ensina que a visão é o mais racional dos sentidos. É o sentido da intelecção, do conhecimento. Mas o Ocidente parece então se esquecer de Narciso, que ensina que a visão é apaixonada, fascinante.
Citando Accioly: “ai (real imagem) ai/ (como do pingo o respingo)/ um rosto do espelho cai/ feito uma lágrima (um pingo”. Mar também é ressonância: uma gota que cai gera circunferências e som. Mais mergulho do que contemplação. Quem já se deixou levar pelo vaivém das ondas, sabe que dizer que o mar é um organismo e que o corpo tem sangue verde não são apenas imagens, porque o mar sabe se desdobrar num abraço amoroso.
Mas, atenção: o mar não devolve o sujeito a si mesmo, porque simplesmente não há si mesmo. O mar também sabe ser bruto, ouve-se dizer ou cantar. Mesmo que seja ilusão acreditar ouvir que o mar canta, que o mar tem vozes: “é o mar ou o vento/ que executa a sentença?/ (de repente é o tempo/ que afoga a consciência”. Aliás, como podemos dizer que o mar sabe alguma coisa? No fundo, procuramos palavras para falar sobre o mar: “a traição do mar te atraiçoa/ (te atrai e soa o mar no ouvido teu/ onde o eco de Eco em eco ecoa/ que teu amor do próprio amor morreu)”. Também não sabemos que sabemos ou se sabemos.
Accioly tem uma dicção clássica, um lirismo trágico em que o sujeito se abisma. Há mais desejo que alegoria. Sereias nascem das ondas e falam de amor. A espuma do mar é de esperma. E Narciso ver-se num mar, ao invés de num rio, é tudo menos um detalhe. O mar é revolto. O mar tem dentes. O mar tem inúmeras direções. O mar tem redemoinhos. É clássico, mas não apolíneo. A poesia lírica, no horizonte clássico, é poesia menor. O menor se torna imenso ao desdobrar-se para dentro. Saímos do mar com gosto de sal na boca. E perguntamos, “o que há depois do mar?”. Os ecos respondem e a pergunta é a mesma, estranhamente outra. Ou as vozes do mar criam estranhas harmonias com nossa voz. Temos uma nova música. Uma estrutura que não se limita a repetir um esquema, porque é parteira de novas estruturas. É a própria ideia de sujeito que surge do mar – um estranho sujeito sem subjetividade.
Não sei se é lenda ou verdade que toda vida veio da água.
“Atlântico sem rumo”: Flávio Amoreira em Escorbuto nos diz que no mar nada de teleologia. Mar é destino, mas o mar mesmo não tem um destino. Mais um mergulho na poesia marinha e mar é linguagem. Mas, nada de teorias de linguagem como gramática, ar que respiramos, artefato que devolve a humanidade à sua condição, ou instrumento para resolvermos coisas. Linguagem como “medo do mundo por dentro”, o mar como um corpo estranho, rota-serpente em que nadamos sem saber se estamos no controle ou se somos levados. Tornar-se o que se é: foi diante do mar que Nietzsche teve a revelação do eterno retorno.
Na poesia de Flávio, existem tantas nuances no mar que não se pode dizer que o mar é uma totalidade – mas não é também o disforme. O escorbuto faz a boca sangrar, causa feridas que não cicatrizam. Vitalidade que mortifica, a vida expele mar de si mesma, seguindo o fluxo que a fez nascer do mar. “POMESPONJA recolhos reunimentos/ meus poros são olhos! pontos focados”: a linguagem só é abstrata na medida do corpo – e não na medida do intelecto. O corpo absorve água do mar, a linguagem fica embebida por uma água densa, cuja fonte é intensidade. Como em versos, o mar tem desses organismos quase minerais que se alimentam pelos poros. Não há uma consciência escolhendo o que dizer na voz do poeta que bebeu água do mar. Em Flávio Viegas Moreira, a linguagem se derrama: “é tanta vontade! tanta!”
O mar não parece fazer parte da natureza, não a romântica e muito menos a dos cientistas. A moldura do mar - de areia que, tão fina, toma a forma dos pés que a pisam - não o limita como um quadro, entre quatro coordenadas, fechado em si mesmo que sublime, mas o amolda apenas numa linha sinuosa, e depois da linha o abismo sem ponto de partida ou chegada, o mar apenas, e além do mar - o que a imaginação consentir. Como bolhas saem, quando (as palavras) com, na garganta,o mar, fala-se. A poesia de Flávio Viegas Amoreira traz o mar em si, tem sal na respiração, corais marulhando na voz. Em tudo, percebe-se marejar a monstrumaravilha.
Quem nunca passou pela experiência de quase afogamento? Então, foi assim: o mar tranqüilo de repente começou a te puxar. Agarrar-se à terra de nada vale se o próprio futuro se fantasia de fluxo te levando ao fundo, mais ao fundo, onde as correntezas são mais desgovernadas e poderosas. A terra é que é a miragem numa situação dessas. A sabedoria tradicional ensina: não ligar pra essas coisas, desligar-se, se o mar te fisga deixar-se ir a favor da corrente, na contramão da história. Deixar-se ir, mas não como quem dorme. Uma hora o mar te vomita na praia.
Quem nunca passou pela experiência de ser derrubado por uma onda? De ser aprumado como um troço qualquer no ventre do mar e, a custo, erguer-se para respirar e ser derrubado novamente, quase no limite do fôlego?
Por que os rituais se tornam mais verossímeis se ocorrem à beira-mar? É na areia que se desenham os círculos que nos protegem do horror, do imenso da vida? Por que o fascínio infantil de escrever o próprio nome na areia, só para vermos o mar apagando o que traçamos? É o que nos diz o poeta: “derramo o que me apraz pensamento amplificado”.
* Daniel Faria é historiador e poeta. Autor do livro O Mito Modernista, publicado pela EdUFU em 2006. Publicou Matéria-Prima, pelo projeto Dulcinéia Catadora em 2007. Foi incluído na Pequena Cartografia da Poesia Brasileira Contemporânea, organizada por Marcelo Ariel e editado pelas Edições Caiçaras. Seu Livro de Orações saiu em 2012 pela série Caixa Preta, da Lumme. Outros textos de sua autoria podem ser encontrados no blog linguaepistolar.blogspot.com e em http://mallarmargens.blogspot.com.br.
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