Fotos: Daniela Giacometti
"Música para músico é egocentrismo, música para o ouvinte é doação. A repetição, na minha música, é uma reprodução da vida, o eterno retorno a que se refere Nietzsche", diz Tarso Ramos. Em comemoração aos 15 anos de carreira, o músico acaba de lançar seu primeiro álbum independente, Chuva no Mar - Tarso Ramos piano solo. Nessa entrevista ele fala sobre essa produção, sobre as dificuldades de viver de música, sobre música tonal, música de cinema, não música... Em meio a tantas classificações e conceitos, prefere denominar o que faz simplesmente como "música para o ouvinte":
Depois de muita batalha, o CD está na rua. Conte como foi (e é) a luta para conseguir produzir música em Santos?
Produzir música é um ato independente, não importa onde estamos, se em Santos ou Shangai. Hoje com a internet é possível pesquisar qualquer tipo de música e se inteirar do que está sendo feito em qualquer lugar do planeta, compor sua música, gravar em um notebook e divulgá-la. Como em sua origem a produção já é independente, não vejo dificuldades em produzir música em Santos e colocá-la à venda como eu fiz. O que é difícil, mas não apenas em Santos, em todo o Brasil, é viver de sua arte. Eu me especializei e busquei grandes professores para aumentar meu conhecimento musical a cada dia, e hoje este conhecimento é útil para que eu sobreviva dando aulas ou realizando outros projetos que não se restrinjam a apenas tocar ou me apresentar em público. Ouço muitas críticas a Santos, e eu também as faço, mas as críticas são feitas como se aqui fosse uma metrópole. Não nos esqueçamos de que aqui moram aproximadamente 400 mil habitantes, temos três teatros (um interditado) e um SESC. Como abraçar todos os músicos? Como fazer para tocar toda semana? Estarei todo sábado no SESC? É preciso colocar as coisas nos seus devidos lugares. Santos não é São Paulo, que não é Nova Iorque... As dificuldades aqui não são impostas pela sociedade ou por faltas de espaço, mas pela geografia. E em São Paulo ou Nova Iorque a geografia é generosa, mas a concorrência também é maior... Ces’t la vie...
No Brasil ou em qualquer outro país, um médico, um dentista ou um engenheiro dificilmente ficam sem trabalho. Penso que se trata de uma questão cultural, porque convencionou-se que a ciência e a tecnologia são mais importantes que a arte (e o futebol idem). Considero, então, que são construções culturais e sociais... para além da questão geográfica nós, a sociedade, também não teríamos responsabilidade sobre a falta de espaços para um artista se apresentar?
Você tem razão, quando o Neymar ganha R$ 4.000.000,00 por mês, é porque os estádios ficam cheios, as vendas de camisas do Santos só crescem, a audiência da TV só aumenta, e isso tudo significa que a sociedade está valorizando o futebol muito mais do que qualquer outra coisa! Eu entendo e concordo com você. A minha luta é justamente para que os artistas enfrentem esta situação e achem uma saída para viver de sua arte. Existem vários artistas conseguindo, bons ou não, populares ou não, não entrarei no mérito, mas o fato é que há vários que estão até ricos! Então vamos olhar para eles e analisar o que têm feito.
Voltando ao seu CD ... ele é uma mescla de seu trabalho mais recente ou abarca uma produção de vários anos?
Comecei a compor em 2002, e de lá pra cá ainda não havia reunido minhas músicas para fazer um álbum. Como mantive o mesmo estilo, foi possível pegar as mais antigas e as mais recentes sem perder a unidade sonora do CD.
Como foi traduzir o poema de Flávio Viegas Amoreira e seu mantra "Chuva no mar é desejo" para o piano?
Na verdade a intenção não foi musicar um poema. Eu apenas me inspirei na frase “Chuva no Mar é desejo”. Tentei reproduzir o som da chuva caindo no mar e percebi que esse barulho era repetitivo, assim como a minha música, então, de certa forma, essa composição norteou toda a sonoridade do CD. A repetição, na minha música, é uma reprodução da vida, o eterno retorno a que se refere Nietzsche. Mas, assim como com o passar do tempo a chuva que cai no mar faz o mesmo barulho, contínuo, mas nunca é a mesma chuva nem o mesmo mar, nas minhas composições sempre retorno ao começo, mas sempre com um elemento a mais.
No lançamento do seu CD você apresentou uma nova pesquisa, baseada na música modal, que se difere da tonal. Fale um pouco sobre isso.
Antigamente não havia música tonal, que é basicamente essa que ouvimos nas mídias e que se cristalizou em nossos ouvidos, onde um acorde tem relação com o outro. A música modal é harmonicamente mais livre, por isso um pouco menos previsível. Foi utilizada até a Idade Média e é baseada nos modos gregos, que são escalas utilizadas por povos antigos, como os dóricos, por exemplo, e era comum dizer “vamos tocar do mesmo modo como os dóricos tocam”, por isso o nome modal. Minha busca é por trazer novamente essa sonoridade antiga para nossos dias. Isso não é novidade, muitos compositores fizeram e ainda fazem música modal, ou ao menos colocam um toque modal dentro de sua música tonal, que é o caso de Gilberto Mendes ou Ennio Morricone, porém, não é uma música presente no mercado de produção musical mundial, ou seja, ficou restrita a músicos pesquisadores. Mas devido aos instrumentos atuais, à educação de nossos ouvidos contemporâneos e a outros motivos técnicos, também já não é possível reproduzir com autenticidade a música antiga, que aliás era basicamente coral, e portanto o que faço é uma releitura, me baseio na música antiga para fazer a minha, já do século XXI.
Você é um admirador da Música de Cinema. Em que aspecto ela se difere de outros tipos de música?
Sem dúvida ela é condicionada à cena ou a outros aspectos do filme, ou mesmo à opinião do diretor. Neste ponto ela se difere da música de concerto, que é mais livre, onde o compositor pode apenas exercitar sua técnica, sem interferências externas. Mas o que é ser livre? Quais materiais temos nas mãos? Dó, ré, mi? Música tonal? Atonal? Modal? Fazer barulho vindo de um “não-instrumento” é original? É liberdade? Qualquer que seja sua liberdade, ela é sempre vigiada, nunca faremos algo fora da realidade, por mais exibido que seja o compositor, ele não é um Deus. Portanto, repito as palavras de Tom Jobim: “toda música é feita sob encomenda”. Ele tem absoluta razão! A encomenda pode ser sua própria criatividade, mas ela nunca será livre da realidade em que vivemos, do tempo em que existimos. A música de cinema como a conhecemos hoje foi iniciada por músicos de concerto que imigraram da Europa para os Estados Unidos em busca de trabalho e colocaram toda sua técnica erudita a serviço das trilhas sonoras. Portanto, não temos como criticar, como fazem alguns eruditos xiitas, um Max Steiner ou um Bernard Herrmann sob a ótica de que “fazem música de cinema”. Eles fazem música! MÚ-SI-CA! E muito mais belas do que fizeram um Boulez ou um Stockhausen. A música deles consegue ter vida própria, independente das imagens. Outra crítica relativa à música de cinema é a falta de forma, o fato de que elas não se sustentam fora do filme. Mas Morricone está aí para provar o contrário, e como ele mesmo afirma, “a não-forma também deve ser considerada”.
Segundo o Gilberto Mendes, o que você faz ainda é música. Qual o papel da não música hoje?
A não música ficou restrita às universidades e às salas de concertos com pouca audiência. Compositores do século XX deram um tiro no pé. Mas de qualquer forma, o que os músicos do século XX (incluindo Gilberto Mendes) fizeram era necessário. A música chegou a um ponto onde as técnicas de composição evoluíram muito e não havia, naquele momento, outro caminho a ser tomado a não ser a ruptura com o passado, com a música romântica, com a busca pelo prazer, pelo belo. Então surgiram novos conceitos que se chocaram de forma deliberada com a música tradicional, chegando ao absurdo de se chamar 4´33, de John Cage, onde o músico fica em silêncio durante toda a peça, de música! Isso é colocar o conceito à frente do resultado. O século XX distanciou-se da realidade, da sociedade, e passou a fazer uma música cheia de conceitos e pouco agradável, mas uma música que não agrada ou até mesmo que disfere golpes no ouvinte não pode sobreviver. É a intelectualidade pura e simples, o exibicionismo técnico, enfim, o ego se sobrepondo à música. A humanidade faz música para ninar, para comemorar, para se casar, para se divertir, ou apenas para ter o prazer de ouvir, essa relação íntima do homem com a música nunca deve ser desatada, não podemos e nem conseguiremos tomar posse da música e levá-la para uma sala de concerto com o status de “erudita”, o próprio nome já é soberbo. A música, toda ela, é do homem, e a música que se distancia dos sentimentos humanos como a música de concerto contemporânea, onde impera a razão, torna-se vazia: música para músico. Música para músico é egocentrismo, música para o ouvinte é doação.
Como definiria a sua música?
Música para o ouvinte.
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