quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Montagem de Marco Aurélio Cremasco a partir da obra de Renoir, Monet e Van Gogh


 Marco Aurélio Cremasco

– Tio, o natal se aproxima e me vejo na necessidade de escrever e resgatar um pouquinho o que a escrita pode nos reservar no final de uma jornada ou de uma carta. Nós, que viemos do interior, fazemos fronteira com estradas boiadeiras e deixamos correr lágrimas fáceis, pois mantemos aquela criança que insiste em não crescerContudo, a história, na dependência de quem a registra, edifica seres imensos ou adimensionais. A vida nos traz muito, desde que possamos dar a ela o tempo de cada um. Lembro-me, não sei qual idade tinha, fui conhecer o Buracão de Cor para tingir as mãos com as areias daquele lugar. Quando voltei à casa de vó Esperança descobri a família desorientada. Perdemos o ônibus para o Guayrá. Querido tio, o que eu gostaria que soubesse, de fato, é que nos meus sete ou oito anos, ensaiei as primeiras cartas, porém nunca as postei. Carta escrita na páscoa endereçada ao coelhinho; no natal, para o Papai Noel; e no dia dos Pais. Todavia, naquela época, papai fora encontrar-se com Santino, o velho capitão de Luz Divina, em algum canto do Céu ou em outro que lhes bem aprouvesse. Escrever, então, para quem? Ainda assim escrevi para alguém que, na mente daquele guri, representava algo importante ou que no futuro pudesse lhe trazer algum alento. Essa pessoa nunca a recebeu, porque nunca acreditei em Coelho da Páscoa e Papai Noel. Cartas de mentirinha não carecem selos. Por isso, tio, receba nesta, as cartas que nunca enviei.
De seu sobrinho: Zé Brix.
– Que bom, Brix, receber a sua carta. Você com a mania de escrever e de se perder no tempo. Meu Deus, Zezinho! Como você era um Zé Perdido. Caso um pássaro lhe atravessasse o olhar, você pregava-se nas nuvens, com pés grudados no chão, enquanto todos seguiam e imaginavam-no de mãos dadas com algum de nós. Que nada. – Onde está o Zezinho? Ficou para trás – era a resposta de sempre. Sem contar os sumiços ao Buracão de Cor. Como adorava areias coloridas. Vivia brincando, passando-as entre os dedos como fosse aprisionar a eternidade de uma existência imaginária. Você, com o seu universo, construiu o de uma família. A sua avó, o seu avô, os seus tios e todos que partiram, tinham certeza que, no mínimo, você viraria astronauta ou escritor, por viver em outra dimensão. Esta vida que nos distanciou por anos, sabiamente nos aproximou com a sua carta. A saudade, às vezes, dói, entretanto espero que ela possa ser alívio na medida em que nos traz resquícios de felicidade. Somos resultados do que fomos e do que queremos ser; do que antes nos fizeram e daquilo que vivemos. Somos seres atemporais de uma memória embaçada. Resta-nos o esforço de tirar a venda dos olhos e viver além de nós mesmos. Não me leve a sério, Brix, isto é reminiscência de homem velho. Mas já que me escreve, saiba que, quando você nasceu, seu pai e eu caçávamos no Mato Grosso. Bem verdade é que soubemos de seu nascimento três meses depois. Quando você completou um ano, seu pai e eu pescávamos em Goiás e não chegamos para o seu aniversário. Chuva e lamaçal misturados à terra vermelha do Paraná resultam em cola de grudar almas. Sabe como é. O seu pai desesperava-se e nunca se perdoou por ter perdido essas e tantas outras datas. Desconfio, até, que nunca se perdoou por ter morrido tão cedo. Escrevo isto porque sinto pontada de tristeza na sua carta. Se dói para quem lê, imagine para quem escreve. A vida, às vezes, é muito mais dolorida do que a própria ficção que a recria. Gostaria que soubesse, querido sobrinho, as cartas que você escreveu e nunca postou, eu sempre as recebi.
De seu tio: você mesmo.

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