segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Fotografia de Marcelo Rayel

Por Marcelo Rayel

Olá!
Aqui estou, sacudo-me da tua poeira centurial, essa divisão canhestra em doze, depois em trinta, com dobras em sete, que se arrastam na nossa miséria pessoal, coletiva, insistente. Pouco lustroso, diria, não enxergo qualquer nesga de esperança por bonança, o vindouro dos bons dias, a fé nessa nossa cegueira de sentir que o melhor está por vir. Sim, estou preso nessas linhas, nesse derrame feito sangria que, juro, não quis em momento algum. Resultante desse alheio que até fui comigo mesmo. Sacudo e jogo fora essas hostes demoníacas que flagelam meu corpo, desatinam em sofrimento. Não mais! Em nome de nada faria outra vez. Não quero mais perseguir esses conselhos. Desejo, somente, me especializar em vazio, aprimorar o quanto aprendi do desconhecimento.
Olá!
Olá, Queen’s Park! Jurei que não fizesse tanto frio naquela manhã. E ainda me meti à biscoito-se-sebo de te ver em bermuda e camisa-de-manga. Só faltaram os chinelos. Que frio! Achei que estava até um pouco mais tarde em Loftus Road, foi quando descobri que o sol, no verão, se ergue às cinco da manhã. Que cabeça, a minha! Não era à toa, chegando a tarde, logo depois do almoço, não conseguia levantar da cama do hotel, aliás, macia, aconchegante, abrangente. Quase não fui à Biblioteca nesse dia. Por pouco não peguei minha ale no Euston Fliers, sentei-me no meio-fio, a devidamente sorver minha melancolia diante daquela derrota minha de cinco andares, de ser artista em terra de assassino. Mas, valeu! Queria muito ter te conhecido! Foi muito bom! Todo aquele amplo espectro-espaço verde, com os residenciais permeando tuas árvores, teus arbustos. A respiração do ar gélido de tua manhã. Os trabalhadores se acotovelando no pequeno café ao lado da estação. Quem bom, Queen’s Park! Que bom!
Olá!
Olá, Notting Hill Gate! Tuas antigas casas geminadas que tanto incitam tuas novas gerações de todos os cantos do mundo a se estabelecerem ali, do jeito que são! Das cores de tuas paredes, do silêncio de tuas igrejas, das casas sobre os elevados, de toda sorte de quinquilharias que mais pareciam aos meus olhos as mesmas miçangas que enfeitiçavam os silvícolas de um novo mundo posteriormente explorado e pisoteado em meio ao mais contínuo genocídio de que se tem notícia. Sim, Notting Hill, acho que morri quando vi tuas flores penduradas em postes de luz, que ficou um pedaço da minha carne nos canteiros ornados por pétalas, o que se eventualmente chamaria de poesia (ou certamente seria!). Juro que não foi culpa minha, meu corpo ainda funcionava nessa época. Sei, bem sei disso: nunca mijei tanto em Londres! É porque meu corpo não transpirava, nunca passei por tanto aperreio. Quase entrei num cinema fechado diante de tamanho desespero. Foi graças o pleno exercício da bexiga que conheci aquele shopping mais à frente. Estive dentro de ti. Foste meu útero. Só queria muito te agradecer.
Olá!
Olá, Shepherd's Bush Green! Terra das Sufragetes, hein?! Mas não tens o ar do avanço que só o feminino é capaz de nos proporcionar. Tens cara de cidade do interior, com a sua praça, os comerciantes locais, a venda, a troca. Acho bom você ficar fora dos roteiros! Tenho ciúmes! Não quero ver em suas ruas essa gente imbecil que pensa (ou acha) que o gosto duvidoso de seus passeios medíocres, de seu turismo entediante, é um grande assunto para se perfazerem de atuais, modernos, materialismo histórico babaca da engenharia, que tudo reduz à boçalidade da coisificação da alma. Não sabem o que é materialismo, não sabem o que é histórico, não sabem o que é racionalismo, não sabem o que é instrumental, aliás, sabem de quê, essa gente?! Shepherd's Bush Green, não deixe essa gente pisar aí! Mande-os(as) para South Africa Avenue e deixe os ultras do Rangers cuidarem desse assunto! Foi nesse teu ventre, Shepherd's Bush Green, que se gestou o direito que toda mulher tem de participar da política, pelo voto, pelo posto, participar da vida! A vida é tua política, e elas se misturam! Seja bem-vindo!
Olá!
Olá, Botanic! Ê, Botanic! Olha eu aqui outra vez! Sabe, quando cheguei em Bangor naquele domingo, chorava a cada vez que ouvia o nome das estações sendo anunciados dentro do trem! Parecia um idiota! Porque jamais pensei nessa minha vidinha tacanha e quase embotada que eu visse Londres de novo, Belfast de novo, Bangor de novo! Sinceramente, achei que tinha realizado um sonho e pronto! Sabe aquele sonho de menino, um dia ensebar os pequenos degraus de Eros lá em Picaddilly Circus e, feito isso, tudo bem?! Missão na vida cumprida?! Sonho realizado?! Mas foi, então, que cheguei até a tratar com desdém do Soho principalmente depois daqueles dois primeiros dias problemáticos que tive na capital, nunca pensei que estivesse lá numa segunda vez, andando por aquilo tudo outra vez, e outra vez. Olha, aí... Eu de novo! É namoro ou amizade?! Como você é gostosa nessa sem-vergonhice desbragada, dessa suruba do velho com o novo, intelectual tendo de divisar artista, esse roça-roça, esse ombro-a-ombro... eu, hein?! Ô, lascívia! A juventude, a experiência, os clowns, os balões coloridos da primeira vez, as livrarias da segunda vez, a primeira vez por Sandy Row, a segunda pelas universidades. Ô, meu pai! Olha, obrigado pelo No Alibis, pela Sinéad e pela Moyra, tá?! Querem que eu as traduza para as paragens de cá, mas, sendo sincero, não sei se mereceriam tal sorte. Obrigada por acolher meu perdimento. Sei não, acho que nos veremos outra vez.
Olá!
Olá, Carnalea! Ah, Carnalea! Pronunciei teu nome um ano inteirinho antes de entrar no avião! Ah, danada! A primeira vez que ouvi teu nome, há dois anos atrás, dentro daquele trem para Bangor, pensei: “Wow! É assim que se pronuncia o teu nome?! Que coisa linda!”. Ah, Carnalea! Sonhei com aquele momento! Vem cá, Carnalea! Verdinha, você, hein?! Que maravilha! Olha, acho que dessa primeira vez você não entendeu porque eu pedi para você tirar a roupa. Eu te explico. Sabe por que?! Porque eu tinha certeza que assim que eu repousasse a cabeça no teu ventre nu, saborosíssimo, diga-se de passagem, eu sonharia do jeito que sonhei naquela tarde! Porque era repousar no teu colo e conhecer, finalmente, o Mar do Norte daquele jeito que eu nunca tinha visto e de que tanto os poetas locais poetizam! Você é uma riqueza de coito, Carnalea, cheguei a esquecer Baía de Helena, sabe aquele encontro dos corpos frequente, querente, amiúde, que, de repente, você encontra o sorriso da tua amada e os dedos dela a percorrer seus cabelos sobre uma cama banhada à luz de roubar o fôlego?!Não sei, Carnalea... Acho que não será amizade. É namoro, mesmo! Eu volto, hein, Carnalea! Vou te levar flores, meu beijo, meu corpo e a minha alma de Trópico de Capricórnio. Ah, Carnalea!
Olá!
Olá, Euston! Olha, serei breve. Você é muito legal, joiado, arrumadinho, uns parques bacanas, estações de trem legais, e tudo mais! Mas... olha... dá, não! Aquela barulheira dos infernos a madrugada inteira, dá, não! É sirene, é ambulância, é polícia, a madrugada inteira, todo santo dia! Cacete, dava para ouvir de onde eu estava, lá de Argyle Street! Dava para ouvir de Russell Square, dá licença! Qual é o seu problema?! Porque é Candem?! A turma que vai para lá não quer nem saber?! É essa a sua justificativa?! Olha, está tudo bem, eu vou gostar de você, tá?! Só me dá mais algum tempinho para eu me acostumar com a idéia. Seremos amigos, pode ficar tranquilo.
Olá!
Olá, potestades! Colocarei teus nomes em minúsculas, se vocês me permitirem. E mesmo que não permitam, colocarei do mesmo jeito. Já haviam me avisado que vocês são infernais, mas admito que vocês enrubescem o próprio Lúcifer. Que cancro (permita-me a latinização desse momento) são vocês! Olha que eu não acreditava no que vocês são capazes, mas, agora, sei. Sim, vocês vêm para a destruição completa e total da vida! Acho que já deu, o mal que vocês causam! Não estou, nesse momento, no melhor da minha forma, minha vida anda por um fio, mas acredito, penso, que tudo tem limite e há um Deus para vocês. Querem se antagonizar, tudo bem... só não contem comigo! Não, não quero, ainda sou protagonista do meu desejo e podem tirar seus pés sobre mim! Podem tirar seus pés sobre o meu pescoço!  Sinceramente, não quero (e não vou!) passar esse restinho de vida que ainda tenho, até esse último dia tão pertinho que está, tendo de olhar para a cara de vocês com essa fome de morte! Não, aqui não! Afastam-se! Não estou mais para vocês! Que a vileza faz parte de vocês, isso aprendi, isso, agora, eu sei! O que me espanta é a completa falta de limites, de tudo, em nome do quê, mesmo?! Do mal, puro e simples?! Fiquem sozinhos, acho que vocês não precisam, e nem precisarão de mim. Minha essência é outra, não compactuarei que esse expediente vil de décadas que não respeita sequer o que sai do próprio ventre, uma determinação dessa condição espúria que vocês só sabem externalizar?! Não dá nem para mandar vocês para o inferno! Acho que até lá as portas estão fechadas para vocês!
Olá!
Olá, deslealdade! Olá! Que desgosto foi ver o teu rosto! Que desgosto e quanto arrependimento meu em ter insistido com você! Acho que não quero mais aprender quaisquer lições de ti. Você só destrói, não acrescenta nada. Como é que você pôde fazer aquilo, como é que você pode ter sido tão sórdida a esse ponto?! Agi por amor, deslealdade, e você me faz aquilo?! Não considerou nada, absolutamente nada! E ainda me estarreço na minha ingenuidade de crer que algum sentimento nobre ou limpo pudesse te atingir, fazer você pensar, fazer você mudar. Não, nada, absolutamente nada te atinge! Mas você é deslealdade, não é?! Você prefere meio-lugar te apontando de meretriz do que alguma postura que seja definitivamente diferente de tudo o que sempre foi. Deve dar um prazer danado, a deslealdade. Deve ser afrodisíaco, quase uma droga. Como é que dá para acreditar em seu eterno estado de sofrimento, falta de paz, se você é capaz de arrebentar contra a parede a vida que você mesma produziu?! Como é que dá para acreditar no sentido do carinho, no significado de uma eterna lembrança, de uma paixão silenciosa, contínua, a eternidade de um sentimento, se você mantém toda indústria mais nojenta de ser apenas por si e nada mais entrar na contabilidade de gestos efetivos, reais, de qualquer bem-querença ou simplesmente a decisão de deixar de se encerrar? Quais seriam os mecanismos que eventualmente eu adotaria para lidar com sua falsa amizade, com sua falsa preocupação, com seu falso carinho, você, deslealdade, que só conhece a si mesma, que só opera para si, em nome de um encerramento que por conta dos seus atos até isso se torna difícil de acreditar? Seu cinismo é tão pungente que ainda requer despedida?! Não se apercebera, deslealdade, que o seu gesto em si já é a própria despedida?! Que não há mais nada a dizer, que não há mais nada a falar, que não há mais nada a trocar?! Deixe-me sozinho, deslealdade! Não pertenço, nunca pertencerei a ti! Sou simples, não tenho muitas posses, restou-me apenas a habilidade de pôr em linhas aquilo que penso e sinto, e que, infelizmente, não garantem qualquer justiça material. Meu mundo, talvez, não esteja aqui. E, portanto, deslealdade, deixe-me seguir, prosseguir, reconstruir as coisas que sei que existem, mas jamais te pertencerão. Porque os efeitos nocivos de ti, deslealdade, serão eternos, desse eterno isolamento que enfrentas, a paz não estará em ti, muito menos baterá em tua porta. Porque és desleal por décadas, uma vida inteira, por milênios! Adeus, deslealdade! Vai, e será sempre um desprazer da alma ter de olhar teu rosto outra vez!
Olá!
Olá, Amor! Achei que você não viria...
Achei que até mesmo você não existiria. E você existe!
Sabe, pelos percursos malfadados das mãos cheias de sangue que às vezes encontramos na jornada, acho que até mesmo para você deve ter passado que certos sabores não existissem mais. De repente, você chegou! Finalmente, não sei... Mas você chegou, está aqui comigo!
Nesse vento pequeno e frio da madrugada do nosso encontro onde esquecemos nossas mãos uma sobre a outra. Que passamos horas a ouvir nossas vozes nas narrativas ora amargas, ora pitorescas, das vidas que acontecem sem a gente saber. Da graça do quem era você há uma semana atrás?! O som estridente do rádio noite afora, com todos aqueles sotaques fundeados na Barra. Senti até tua respiração, Amor. Achei que a minha desesperança tinha me afastado de ti.
E você chegou!
Tudo fôra tão difícil nesses últimos tempos que me pego em estranhamento do zêlo e do carinho contidos em teus pequenos gestos. Como se eu tivesse que me acostumar de novo a esses fatos, reais, concretos, tangíveis, de você me querer e eu querer você. O teu majestoso cuidado de não deixar minha tulipa vazia, dos recados enviados ao longo do dia, uma atenção que pensei que não existisse mais sobre a face desse planeta.
Que bom que você chegou! Existe, é real!
Cheguei a pensar que era uma pessoa perto de certa demência, loucura, insanidade, por entender que certos fatos porventura só existissem na minha própria cabeça, ou vontade. Cheguei a perguntar a amigos se eu era um sujeito delirante, e eles rapidamente providenciavam um calma lá, garoto! Não pegue o continente pelo conteúdo!
E você existe! Bem aqui na minha frente! É real!
Até entendo o Vicentinho estar virado para a terra. Porque talvez seja mais interessante testemunhar o nascer de mais um dia na intensidade da luz que nos banha, dos lençóis amarfanhados, ou desse sono no colo de quem se quer, daqueles que se aproximam. O mar?! Acho que ele já falou bastante do mar, essa paixão velha e renitente dele! Acho que ele goza de certos deleites que só encontra na posição em que ele está hoje.
Como eu fiquei feliz em saber que você me quer, como eu quero você. E feliz em ter de me reacostumar com o fato inapelável de que você existe. Sabe, Amor, ouço todas as tuas músicas, todos esses teus sons que te acompanharam até aqui. "(...) Acho todas elas em comum. (...)". Hoje, penso que os loucos são os outros. E deixemos todos eles do lado de fora. Agora, só ouço o som do teu canto, Amor! E comigo a visão acobreada de tua pele, o uivo desse vento pelas frestas da tua janela, a constatação do mar e suas mudanças de humores, a tua pele colada a minha.
Olá!
Olá, Tempo! Que ainda há de me trazer dissabores e prazeres. Traga-os! Habita dentro mim a vontade e a coragem de tratá-los com o respectivo valor que merecem.
Olá!
Olá, Vida!

Olá!

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