Foto de Márcia Costa |
Por Dea Conti
Toda história tem um começo. Esta, começa num portão. Um portão de ferro, branco, perdido lá trás, no passado.
A moça chega, passos rápidos, está ofegante. Passa as mãos nos cabelos longos, olha, lânguida, de um lado, de outro, encosta-se no portão e vira-se para frente. A cabeça pende para o lado e ela aperta os olhos, num meio sorriso. O sorriso é para o moço, que chegou logo atrás.
O moço respira curto. Ensaia uma conversa, mas se atrapalha. Pensa em desistir. Mas, vinha tão cheio de coragem, que resolve falar. Respira, olha a moça, a cabeça tombada de lado, tem vontade de beijá-la... A coragem volta.
As palavras saem de sua boca, decididas, num quase supetão. Quer namorá-la, diz ele à moça, que o olha entre surpreendida e pouco à vontade. Ela move o corpo, ligeiramente, e apoia-se inteira, agora, no portão.
Ele está tão perto da moça, que o calor dela o aquece. Espera, ansioso, e o tempo demorando mais que o próprio tempo. Tem vontade de abraçá-la, apertá-la contra o portão.
Ela olha o moço. Ele está muito perto e o cheiro dele penetra suas narinas. Cheiro gostoso, de suor. A cabeça pende de lado, num gesto repetido, e ela hesita.
A resposta da moça sai mais seca do que deveria ser. Um "não" que atordoa e fica ecoando no ouvido. Desejo de recuar. A respiração torna-se mais grave. O coração divide-se entre acelerações intensas e paradas bruscas. Tudo acontecendo num átimo de momento.
Ela desvia o olhar, para não ver o que provocou. O cheiro dele acentua-se e a moça é tomada de alguma incerteza.
O corpo dela, ali, entre ele e o portão. Repara na boca, úmida, e sente desejo de apertá-la contra o portão, de beijá- la. O desejo devolve-lhe a coragem e ele insiste. Quer namorá-la.
O corpo dele pressiona, levemente, o seu. O desejo dele a confunde. Ela sente vontade de escapar. "Não", repete. "Não quero". É um não querer que quer. Um querer que não se sustenta... Corre a mão por detrás do corpo, gira a fechadura e escapa para dentro.
Ele vê a moça escapulindo, tem vontade de segurá-la, de prendê-la, mas não o faz. Está ferido. Quer sair, rápido, dali. Ensaia os passos, sem sentir o chão.
Ela o observa de canto. O portão entre eles define os espaços. Começa a caminhar para trás, na direção oposta de onde está o moço. Dá um tchau, envergonhada. E vira-lhe as costas.
As pernas do moço põem-se a caminhar, por motu próprio. Súbito, uma ideia lhe invade a mente e ele volta atrás. Da moça, ainda um tanto se vê e ele a chama, incisivo.
Ela quase desaparecia por trás da porta. A voz dele a faz parar, entre o entrar e sair. Coloca a cabeça para fora e o vê, atrás do portão, o corpo dele, inteiro projetado para frente.
"Quero que você venha comigo ao Carnaval dos Americanos", diz ele, em tom de quase mando. Ela hesita. Volta para fora, aproxima-se do portão. O cheiro dele torna a entrar por suas narinas. Um cheiro agradável, de suor. Ela pende a cabeça para o lado, o olhar dele fixo nos seus olhos. "Ok", ela diz. "Eu vou".
O portão entre eles não impede que ele a puxe, decidido. Toma-lhe a cabeça entre as mãos e beija seus lábios, úmidos.
O moço sai para a rua, o peito aberto, o coração batendo forte. Dos lábios, ainda úmidos, uma canção assobiada.
A moça, encostada no portão, sentindo, ainda, o beijo e o cheiro de suor. Com riso contido, pensa no moço bonito que desce a rua, assobiando.
Era assim que deveria ter acontecido. Mas não foi como se deu.
"Quero que você venha comigo ao Carnaval dos Americanos", diz ele, em tom de quase mando. Ela hesita. Volta para fora, aproxima-se do portão. O cheiro dele torna a entrar por suas narinas. Um cheiro agradável, de suor. Ela pende a cabeça para o lado, o olhar dele fixo nos seus olhos. "Não", ela diz. "Tenho outro compromisso".
O moço baixa a cabeça, derrotado, vira de costas e segue o caminho, lentamente.
Quarenta e dois anos se passaram. A moça casou-se, teve três filhas, separou-se, arrumou outro companheiro e dele enviuvou. Em um certo fim de noite, repara que há um recado na pasta oculta das mensagens do Facebook. Ela abre e lê a mensagem de um homem desconhecido, que se apresenta como um amigo do Passado. Ela não o reconhece, mas, mesmo assim, responde, de modo cortês. Como se estivesse na espreita, a espera daquela resposta, o "amigo" se apresenta, adentrando e ocupando, num repente, o espaço de uma conversa que ela não pretendia levar em frente. Ele brinca, conta, em detalhes, momentos em que estiveram juntos, fala de outros amigos, de lugares... Mas ela não consegue se recordar. Começa a ficar constrangida, afinal ele sabe tanto sobre ela, inclusive sobre o Presente, mas a ela nada acode à memória. Despedem-se.
Dia seguinte. O moço solicita à moça sua inclusão no círculo de seus amigos, no FB. Ela o aceita e vai investigá-lo, em sua timeline, em seus álbuns de fotos... Está curiosa. Quem sabe algum rastro do Passado possa ser encontrado, por ali. Ela o observa, atenta. Em vão. Ele é casado. Lá está sua mulher, seus filhos... Depois de perder algum tempo por ali, ela o abandona e quase o re-esquece.
Semana seguinte. O moço reaparece. Simpático. Ele é simpático, brincalhão, sagaz. Um homem agradável. Conversam. Voltam a falar sobre o Passado. Não se conforma que ela não se lembre de nada. Repete detalhes, na tentativa de reavivar o vivido. Desiste, chateado.
Dia seguinte. A moça observa que há um recado na caixa de mensagens. É dele. Abre-a e, nela, apenas a imagem de um portão. Branco. Antigo. Não compreende. Está a observar o portão, quando uma pergunta aparece na tela "Lembra-se dele?". Não, ela não se lembra. "Pertencia ao consultório do seu pai. O portão da entrada." Ela volta a olhar a imagem. "Sim! É ele!", diz, sem compreender o que está se passando. "Eu o comprei. Um dia, passando em frente de onde havia sido o consultório do seu pai, vi que estavam reformando o imóvel. O portão estava jogado na terra, onde antes havia um jardim. Lembra-se do jardim? Parei o carro, conversei com os pedreiros e comprei o portão." "Não estou entendendo. Para que comprou esse portão velho?", diz a moça, surpresa. "Porque para mim ele não é um portão velho. Para mim, ele é a testemunha do meu fracasso, mas, ao mesmo tempo, a única coisa que me restou do momento onde tudo poderia ter sido diferente. Ele é o portão onde deixei a mulher da minha vida, onde falhei, quando não poderia ter falhado." A moça lê e relê as palavras se acumulando à sua frente. Aquele portão... Subitamente o que está ali começa a fazer sentido. A memória vai despertando e ela se recorda. Recorda-se do moço, do seu hálito quente, do seu cheiro, do portão pressionando suas costas... Quarenta e dois anos depois. "Lembra-se agora?" "Sim", ela responde, sem conseguir ir além do assentimento. Há um silêncio demorado, na ausência de novas mensagens. A moça observa o portão, o Passado crescendo, à sua frente e dentro dela. Sente-se miúda, envergonhada. Como podia ter esquecido aquilo tudo? Como não havia reconhecido, naquele homem, o moço de outros tempos? Fecha os olhos, amargurada. Quando volta a abri-los, uma nova mensagem lá está. "Eu me casei, tive filhos, mas nunca me esqueci de você. Sempre quis reencontrá-la. Logo que entrei no FB, a primeira pessoa que procurei foi você. Achei, mas você não respondia às minhas mensagens. Pensei que fosse por estar casada. Quando soube que ficou viúva, voltei a tentar. E você falou comigo. Mas não me reconheceu. Pior. Não se lembrou de mim, sequer quando dei detalhes da nossa amizade. Você sempre foi a mulher da minha vida, a mulher que eu deixei escapar. Mas eu sequer existi para você. E essa é a nossa história de Amor. Uma história de Amor sem final feliz e um portão por testemunha."
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