Por Manoel Herzog
Há um equívoco brutal
em se tentar formar opinião de um país a partir do que falem motoristas de
táxi. Tive táxi em duros tempos de minha vida, posso assegurar que, abstraídas
generalizações, é uma categoria que combina fascismo com egoísmo e ignorância.
Microempreendedores. Quem estranha o que falo pegue um táxi na cidade de São
Paulo. Ou escute um motorista santista pregar a retirada do jardim da praia pra
fazer mais pistas. Faço este intróito pra dizer que em Cuba não é diferente.
Meus primeiros dias na ilha foram de terror, formando minha impressão a partir
do que diziam os taxistas.
Pra quem pretenda
visitar Cuba com espírito investigativo e não como um torpe turista, é de suma
importância a leitura da Utopia, de
Thomas Morus. O sábio inglês destaca, naquela sociedade perfeita, a absoluta ausência de advogados. A sociedade
cubana parece ter alcançado um nível de excelência em tudo superior ao da ilha
de Morus, que errou ao imaginar uma sociedade livre de advogados. Não se pode,
a pretexto de salvar o conjunto, querer eliminar um segmento inteiro da
sociedade. Todos são humanos, todos merecem consideração. De mais a mais, fico
convencido de que Thomas Morus era médico, esta a única razão plausível para
odiar advogados.
Sabemos que os males da
nação brasileira repousam num tripé formado por três categorias: médicos,
militares e empresários. Mas nem por isso eliminá-los simplesmente salvaria a
pátria. Fidel foi muito além de Morus, não só porque sua ilha é real e não
fictícia, mas porque, em vez de extirpar estes três segmentos fez melhor,
integrou-os.
Os médicos cubanos, bem
direcionados e impedidos de se tornarem mercadores e disseminadores do mais nefasto
conservadorismo como seus colegas brasileiros (isso numa grotesca
generalização), representam hoje uma das glórias da sociedade cubana, tão
notável pela excelência de seu programa da saúde.
Militares, então, são
um capítulo à parte. Sendo o próprio Fidel um deles, a presença militar na ilha
é muito forte, haja vista que se impõe verdadeiramente defender a nação do
inimigo ianque. Não se podendo prescindir da presença militar, melhor direcioná-la
a serviço do bem comum. Os militares são criaturas predispostas à obediência -
ensinados a obedecer boas lideranças, sua força é aproveitada pelo bem geral. O
trauma da América Latina com os militares é que na maioria das nações eles se
puseram a obedecer a pior casta da Humanidade, os empresários.
Feliz seria uma
sociedade sem empresários, e neste ponto discordo de Fidel pra concordar com
Morus: não penso que se devesse manter uma categoria que tem por único escopo
se apropriar da energia, da força de trabalho alheia. O empreendedorismo, tal
como o conhecemos, não é mais que a legalização da escravidão, da utilização,
da usurpação. Mas, que fez Fidel, em sua infinita bondade e sabedoria?
Poupou-os do paredão, dando-lhes, até a eles, que são tão nocivos, um lugar ao
sol. É-lhes permitido possuir um táxi. E está bom por demais.
Estava sentado no
Malecón até simpatizar com um bar à beira-mar, onde fui tomar um Mojito. Foi quando
conheci Zulaima. Convidei pra sentar, pareceu simpática, mas não me despertou
qualquer interesse venusiano. Tampouco sua abordagem revelou mais que uma
simpatia tendente à pura amizade.
A amizade vive de
obséquios. A nossa se consolidou quando ela me ofereceu a preço deveras módico
uma caixa de charutos Cohiba. Combinei de pegar no dia seguinte em sua casa,
dia este que ela já programou para me mostrar Havana inteira. Tomamos mais
mojitos e ficamos mais amigos. Convidei-a para jantar.
Mais que o preço do
restaurante, o fato de Zulaima parecer-me um tanto interesseira começou a
deteriorar nossa amizade, o que mais se reforçou ao notar-lhe alguma estúpida
glutonaria. A dado momento começou a decantar uma elegia de nostalgia pela
carne bovina, raridade na ilha. Destilou ódio e preconceito ao amável frango e
ao pobre porco, este último, segundo ela, um animal imundo que come dejetos e
possui carne insalubre, e que os cubanos eram obrigados a comer, à falta de
carne digna, enquanto Fidel e Raul devoravam infinitas reses. Quando contei-lhe
sobre os rodízios nas churrascarias brasileiras (que acho, aliás, de péssimo
gosto) seus olhos brilharam, e notei algo de vampiresco em seu semblante. Tive
medo.
Encerramos o jantar com
uma conta bruta, que me reduziu à insolvência e ao vexame de ficar devendo dois
dólares. O maître, um sujeito bem cínico, me falou que eu podia levar no dia
seguinte, louvou a beleza de “minha noiva”.
Fomos a um caixa
eletrônico e, ante o brotar das cédulas, seguimos pra um café no Hotel
Nacional, algo como o Copacabana Palace. Pressentindo que o café me levaria a
nova bancarrota, aleguei uma inusitada depressão (saudades de mi novia,
?comprendés?) e saí correndo. Ficou decepcionada, achando que eu não viria no
dia seguinte e tampouco lhe compraria os charutos. Jurei que sim, iria, e que
me casaria com ela e a levaria pro Brasil etc.
Só então ela parou um
táxi e negociou um preço notável para que me levasse ao hotel. Não entendi nada
do que falaram ela e o motorista, como tampouco entendi quando Zulaima, antes
de me introduzir no restaurante, trocou breves palabritas com o señor maître.
Sem embargo, ela seguia elogiando meu espanhol perfeito.
Na manhã seguinte, como
por castigo de ter invocado uma falsa depressão, acordei deprimidíssimo.
Sentia-me usado. Ah, Zulaima. Decidi então ser duplamente vil, crápula, abdicar
de meu usual cavalheirismo: não fui levar os dois dólares do maítre, e tampouco
buscar os puros cubanos de Zulaima.
Por conta da depressão
levantei muito tarde, perdi o café da manhã. Elegi então um passeio original,
conhecer o cemitério de Havana, dizem que o maior da América. O fabuloso
Ishmael, de Melville (Moby Dick),
quando se pegava seguindo enterros de desconhecidos lançava-se ao mar. Minha
crise era braba, depois de lançado ao mar agora entrava pra ver campas de
desconhecidos.
Na entrada me foram
exigidos cinco Cus. É um clichê detestável, que tenho evitado até agora, mas
tornou-se inevitável no cemitério: o dinheiro cubano chama-se CU. Paguei
contrariado e entrei. Caminhava por entre túmulos quando um simpático coveiro
saiu-me a explicar de campas e logo queria me mostrar o mausoléu dos músicos do
Buena Vista Social Club. Antevendo novo achaque declinei educadamente do
city-tour macabro e me despedi. Decepcionado, ele me exigiu “a lo mejor uma
ayudita, señor”. Separava moedinhas quando me interrompeu indignado, “no señor,
por lo menos dame um CU”.
Foi quando decididamente
resolvi me fingir de morto.
Ri muito quandoli a primeira vez e mais ainda agora. Que venham mais crônicas cubanas.
ResponderExcluirMe parece que a parte II está no forno, Maísa. Bom ter você como leitora, venha sempre. Beijos, Márcia!
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