quinta-feira, 7 de maio de 2015




Por Manoel Herzog


Há um equívoco brutal em se tentar formar opinião de um país a partir do que falem motoristas de táxi. Tive táxi em duros tempos de minha vida, posso assegurar que, abstraídas generalizações, é uma categoria que combina fascismo com egoísmo e ignorância. Microempreendedores. Quem estranha o que falo pegue um táxi na cidade de São Paulo. Ou escute um motorista santista pregar a retirada do jardim da praia pra fazer mais pistas. Faço este intróito pra dizer que em Cuba não é diferente. Meus primeiros dias na ilha foram de terror, formando minha impressão a partir do que diziam os taxistas.

Pra quem pretenda visitar Cuba com espírito investigativo e não como um torpe turista, é de suma importância a leitura da Utopia, de Thomas Morus. O sábio inglês destaca, naquela sociedade perfeita,  a absoluta ausência de advogados. A sociedade cubana parece ter alcançado um nível de excelência em tudo superior ao da ilha de Morus, que errou ao imaginar uma sociedade livre de advogados. Não se pode, a pretexto de salvar o conjunto, querer eliminar um segmento inteiro da sociedade. Todos são humanos, todos merecem consideração. De mais a mais, fico convencido de que Thomas Morus era médico, esta a única razão plausível para odiar advogados.

Sabemos que os males da nação brasileira repousam num tripé formado por três categorias: médicos, militares e empresários. Mas nem por isso eliminá-los simplesmente salvaria a pátria. Fidel foi muito além de Morus, não só porque sua ilha é real e não fictícia, mas porque, em vez de extirpar estes três segmentos fez melhor, integrou-os.

Os médicos cubanos, bem direcionados e impedidos de se tornarem mercadores e disseminadores do mais nefasto conservadorismo como seus colegas brasileiros (isso numa grotesca generalização), representam hoje uma das glórias da sociedade cubana, tão notável pela excelência de seu programa da saúde.

Militares, então, são um capítulo à parte. Sendo o próprio Fidel um deles, a presença militar na ilha é muito forte, haja vista que se impõe verdadeiramente defender a nação do inimigo ianque. Não se podendo prescindir da presença militar, melhor direcioná-la a serviço do bem comum. Os militares são criaturas predispostas à obediência - ensinados a obedecer boas lideranças, sua força é aproveitada pelo bem geral. O trauma da América Latina com os militares é que na maioria das nações eles se puseram a obedecer a pior casta da Humanidade, os empresários.

Feliz seria uma sociedade sem empresários, e neste ponto discordo de Fidel pra concordar com Morus: não penso que se devesse manter uma categoria que tem por único escopo se apropriar da energia, da força de trabalho alheia. O empreendedorismo, tal como o conhecemos, não é mais que a legalização da escravidão, da utilização, da usurpação. Mas, que fez Fidel, em sua infinita bondade e sabedoria? Poupou-os do paredão, dando-lhes, até a eles, que são tão nocivos, um lugar ao sol. É-lhes permitido possuir um táxi. E está bom por demais.

Estava sentado no Malecón até simpatizar com um bar à beira-mar, onde fui tomar um Mojito. Foi quando conheci Zulaima. Convidei pra sentar, pareceu simpática, mas não me despertou qualquer interesse venusiano. Tampouco sua abordagem revelou mais que uma simpatia tendente à pura amizade.

A amizade vive de obséquios. A nossa se consolidou quando ela me ofereceu a preço deveras módico uma caixa de charutos Cohiba. Combinei de pegar no dia seguinte em sua casa, dia este que ela já programou para me mostrar Havana inteira. Tomamos mais mojitos e ficamos mais amigos. Convidei-a para jantar.

Mais que o preço do restaurante, o fato de Zulaima parecer-me um tanto interesseira começou a deteriorar nossa amizade, o que mais se reforçou ao notar-lhe alguma estúpida glutonaria. A dado momento começou a decantar uma elegia de nostalgia pela carne bovina, raridade na ilha. Destilou ódio e preconceito ao amável frango e ao pobre porco, este último, segundo ela, um animal imundo que come dejetos e possui carne insalubre, e que os cubanos eram obrigados a comer, à falta de carne digna, enquanto Fidel e Raul devoravam infinitas reses. Quando contei-lhe sobre os rodízios nas churrascarias brasileiras (que acho, aliás, de péssimo gosto) seus olhos brilharam, e notei algo de vampiresco em seu semblante. Tive medo.

Encerramos o jantar com uma conta bruta, que me reduziu à insolvência e ao vexame de ficar devendo dois dólares. O maître, um sujeito bem cínico, me falou que eu podia levar no dia seguinte, louvou a beleza de “minha noiva”.

Fomos a um caixa eletrônico e, ante o brotar das cédulas, seguimos pra um café no Hotel Nacional, algo como o Copacabana Palace. Pressentindo que o café me levaria a nova bancarrota, aleguei uma inusitada depressão (saudades de mi novia, ?comprendés?) e saí correndo. Ficou decepcionada, achando que eu não viria no dia seguinte e tampouco lhe compraria os charutos. Jurei que sim, iria, e que me casaria com ela e a levaria pro Brasil etc.

Só então ela parou um táxi e negociou um preço notável para que me levasse ao hotel. Não entendi nada do que falaram ela e o motorista, como tampouco entendi quando Zulaima, antes de me introduzir no restaurante, trocou breves palabritas com o señor maître. Sem embargo, ela seguia elogiando meu espanhol perfeito.

Na manhã seguinte, como por castigo de ter invocado uma falsa depressão, acordei deprimidíssimo. Sentia-me usado. Ah, Zulaima. Decidi então ser duplamente vil, crápula, abdicar de meu usual cavalheirismo: não fui levar os dois dólares do maítre, e tampouco buscar os puros cubanos de Zulaima.

Por conta da depressão levantei muito tarde, perdi o café da manhã. Elegi então um passeio original, conhecer o cemitério de Havana, dizem que o maior da América. O fabuloso Ishmael, de Melville (Moby Dick), quando se pegava seguindo enterros de desconhecidos lançava-se ao mar. Minha crise era braba, depois de lançado ao mar agora entrava pra ver campas de desconhecidos.

Na entrada me foram exigidos cinco Cus. É um clichê detestável, que tenho evitado até agora, mas tornou-se inevitável no cemitério: o dinheiro cubano chama-se CU. Paguei contrariado e entrei. Caminhava por entre túmulos quando um simpático coveiro saiu-me a explicar de campas e logo queria me mostrar o mausoléu dos músicos do Buena Vista Social Club. Antevendo novo achaque declinei educadamente do city-tour macabro e me despedi. Decepcionado, ele me exigiu “a lo mejor uma ayudita, señor”. Separava moedinhas quando me interrompeu indignado, “no señor, por lo menos dame um CU”.


Foi quando decididamente resolvi me fingir de morto.

2 comentários:

  1. Ri muito quandoli a primeira vez e mais ainda agora. Que venham mais crônicas cubanas.

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    1. Me parece que a parte II está no forno, Maísa. Bom ter você como leitora, venha sempre. Beijos, Márcia!

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