Obra de Romare Bearden |
Por Luiz Soares de Lima
O major acordou sobressaltado com um travo na boca. Nada a ver com o caju de sua província natal. O despertar assustado foi por causa de um sonho que tivera com a sua falecida mãe.
Estavam num descampado. Com o dedo indicador da mão direita ela batia em sua testa: rezava. Nenhum barulho se ouvia, exceto o dedo frenético em sua fronte. Asas de beija-flor. Alzira, uma das filhas do Major, à distância, olhava-os e chorava. Abraçado a ela, um homem branco segurava pela crina um cavalo tresmalhado.
O animal destoava de tudo e ria.
Tinha o eqüino o olhar e o mesmíssimo sorriso escarnecedor que o major vira estampado nos diversos rostos conhecidos dos homens brancos e ricos da cidade.
Esse sonho-pesadelo levou seus pensamentos para sua posse como vereador para a Câmara de Santos em janeiro de 1895.
Eleito. Jubiloso. Negro. O primeiro. O único de uma Câmara Municipal, agora Republicana, cuja consolidação tanto esforço e luta empreendera. Nada valeu-lhe para a admissão. Nem seu passado de caifaz, tampouco o voto popular, que nunca respeitaram. Eles, os nobres edis, muitos dos quais, antes aliados à Monarquia, pousavam agora,como ferrenhos defensores da República. Continuavam monarquistas, escravocratas e sempre hipócritas. Nada queriam perder. Mas não suportaram o igual convívio com o negro Quintino, que tanto serviço lhes prestara. Zombavam. Chamaram-no de negro analfabeto. Besta. Impediram-no de tomar posse. A Câmara fora dissolvida. Quintino não se deixara abater. Enfrentara-os. A força pública estadual garantira sua posse. Pelo menos, o Presidente Bernardino de Campos não desapontara Quintino.
Mas, o que não conseguira fora expulsar aqueles sorrisos de lado e aquelas expressões superiores, que tanto lhe incomodavam: chicotes de pele de hiena a lanhá-lo, impiedosa e furiosamente.
Três anos se passaram da conturbada posse para esse despertar desesperador.
A cabeça de Quintino iria explodir. Doía fundo. Pela primeira vez na vida, teve vontade de chorar.
Como gostaria de estar com sua mãe.
A dor aumentara. O braço esquerdo espetava. Não lembrara de nenhum esforço físico maior no dia anterior. Dobrara-se um pouco. Só podiam ser gases. Não era só um gosto ruim. Agora, uma pontada funda no coração lhe incomodara.
Lembra que fora ao Cais do Valongo pela manhã, para pegar mercadorias e depois até a Rua do Rosário. Cruzara com o mau caráter do Fontana. Quase se pegaram. Os pretos que o acompanhavam impediram a refrega.
Pensara nisso. Deveria tê-lo matado. Que ousadia querer despejá-lo, assim como a muitos outros negros que moravam no Jabaquara.
Saiu da cama. Achava que passava das dez horas da noite e acabara de se deitar. Um frio de agosto penetrava-lhe os ossos. Os dentes, incontroláveis, bateram. Cinqüenta e nove anos pesavam. Sua cabeça doía muito.
Deu alguns passos, tateou o breu. Chegou à varanda da casa. Seu coração acelerado tentou pular boca afora. Sentou-se nas tábuas, em frente ao terreiro. Respirava com dificuldade. Uma névoa espessa cobria a capoeira. Ouviu ao longe o som dos batuques do Quilombo do Pai Felipe. Apenas suas lembranças: quantas festas oferecidas e quantas centenas ou milhares de homens e mulheres vieram beijar suas mãos nas festas que realizava naquele mesmo terreiro.
Quanto poder e orgulho sentira !
Mas, um cheiro modorrento da cidade subia o morro e entrava por suas narinas. Parou novamente com as lembranças. Sua barriga, seu estômago, seu ventre embrulhavam-se. Nada poderia combater o odor de mangue podre, misturado com lixo, fezes e esterco!
Viu duas ratazanas passarem debaixo de suas pernas. Malditos ratos, cada dia mais aumentavam. Em que outro lugar do mundo caberia tanto rato?
Não adiantara trabalhar como um jumento.
Nada limparia aquela cidade.
É certo que o seu morro estava bem cuidado. Zelava pelo Quilombo. Obrigara a todos os moradores a limparem suas casas, recolherem, enterrarem ou queimarem o lixo.
O Quilombo do Jabaquara fora e era o espaço de liberdade, por ele construído. Era um exemplo para a cidade. Todos sabiam disso. O major, com mão de ferro, a tudo comandava. Muitos negros e negras dele dependiam.
Ora, tudo aquilo era seu !
O Major arfava. Entendeu que a sua dor, seu mal estar e tudo o que sentia não vinha do corpo. Saia de sua alma. Roubavam e aprisionavam sua aldeia.
A intimação que recebeu da Justiça, por ordem de Benjamim Fontana, para que desocupasse, em vinte e quatro horas, todas as casas do Quilombo do Jabaquara, inclusive a sua, fora a gota d’água.
Tomavam-lhe a terra que nunca fora deles.
Inadmissível!!!
Iria lutar!
Mataria, se fosse preciso!
No derradeiro estertor gritou como menino e um sorriso abriu: sua mãe surgiu no terreiro... era 10 de agosto de 1898 e o coração do Major Quintino de Lacerda parou de bater.
Sobre o autor
Luiz Soares Lima - Leciona literatura brasileira e portuguesa no Cursinho Educafro (Núcleo Valongo - Santos). Atua como coordenador cultural da ONG Concidadania, em Santos.
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