Dan Quintana |
Por Mariana Branco
TEIMOSIA
Lentamente o rapaz se recolhe. Ele todo se recolhe para si. Volta-lhe primeiro o tronco, antes projetado cheio de coragem. Depois voltam-lhe as mãos, os olhos. Volta-lhe o sorriso. A fala se esconde rápido dentro dele. E assim vai se enfiando em si, num retorno infinito.
Pois pense meu pensamento, moço. Se gente parece mesmo uma eternidade - assim se recolhendo - não há mão que basta! Imagina, que tanto de mão até se por todo de volta para dentro?
E não basta mesmo. Nada nunca basta nem se acaba não, é só suspensão. É aquele cochilo fingido no antes do dormir ou no depois do acordar. Nessa vida nada se estanca, nada para. É fingimento. Só.
Repara bem no rapaz, vê se não! Logo, depois do engolimento (no seu aparente acabado), tornará a se vomitar. Nada basta, nem nunca para não... E é desse jeito, de ciclos e círculos, que gente parece eternidade. Parece eternidade e cheira a desinfetante e vômito, exalando no infinito.
...
CONTO DA TORTURA DO MUNDO
Andava pendendo para um lado como se o mundo tivesse angulado para menos de noventa graus o eixo. Como se houvesse algo de torto na vida. Mais, uma mão piadista tivesse esbarrado, num querer despropositado, na base de tudo. Desde então o tudo havia se entortado. Fora de jeito, ela ia pendendo, mas ia. Aprendera direitinho.
Começou quando lhe inculcaram o sim. A pobre ainda não era nada quando lhe impediram de que um dia viesse a ser. E foram simples mas eficazes treinando para que ela primeiro soletrasse s-i-m, e depois respondesse a quem fosse, fosse quem fosse, apenas com a expressãozinha inofensiva e bem decorada.
A meninota do sim, sua alcunha. Tão fraca das ideias quanto tinha as pernas finas, abria um sorriso frouxo na cara - até seus dentes eram fracos - e no que acreditava ser felicidade, dizia sim. Se lhe xingavam, era sim. Se a mandavam, sim. Pedidos, sim; rancores, sim; afeto, sim; favores; sim, agressões, sim... E nesse amontoado de monossílabo ela foi girando o corpo aos pouquinhos. Cada dia tudo parecia sair mais do lugar. A visão estranha foi lhe forçando a acomodação. Coisica de nada, pra quem tinha superado as expectativas no aprendizado da anuência e submissão. Sujeitou-se numa postura de abnegação entortando-se pra andar na linha torta do mundo. Era mais um sim, na realidade. Mais um entre tantos... Fica tanto por quanto, pensou.
Desconhecia os porquês. Nunca nem sequer tinha ouvido tal vitupério. Interrogações e exclamações eram dois monstros impronunciáveis. Estranhezas. Só se sabia de pontos e vírgulas. Raríssimas exceções permitia-se ponto-e-vírgula, e jamais, jamais, sob uma pena inaudita, que se juntassem três pontos em carreira! Três pontos em carreira, as tais das reticências, parece pensamento. Seria o fim! Um sacrilégio punível com a ira de deus, fosse ele qualquer coisa de muito humano e pouco divino. O que eram então essas coisas, desistiu de perguntar. Não havia jeito pra se construir perguntas. Desistiu sem nem ao certo saber do quê nem do como.
O sabido, e contam, ela via a tortura do mundo, ao passo que todos os outros não. Mas não sabia. Ninguém, aliás, por errado ou certo de se dizer. Ao ir se pendendo, pendendo, cria corrigir esses desvios, o desalinhamento incômodo, mas ao olharem para ela riam da cena da moça a querer se lançar ao chão. E ela, ora, isso é óbvio, respondia a única coisa possível : sim.
Um dia, não levantou mais. Em seus olhos já estava tudo tão fora de lugar, não pode mais ficar de pé. Acabou-se assim, deitada, estirada, um corpo rendido mas alinhado com o mundo desalinhado. E sem perguntar fechou os olhos e, feito uma santinha, antes do silêncio, rezou com a única palavra conhecida e permitida em seus lábios.
Quanto aos demais seguiu tudo na mesma, belamente e socialmente acertado num sinfônico e primoroso eco de três letrinhas, bem ajustadas e repetidas em anestesia, sim, sim, sim, sim.
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CONTO MUSICAL
Maria Bethânia me canta uma música de Roberto Carlos. Eu bebo mais um gole do vinho. Muitas taças, perdi, bebendo vinho educadamente – penso. Nunca é menos de uma garrafa. Algumas economias poderiam ter sido feitas. Amanhã, que eu não me esqueça. Melhor seria verter logo garrafa boca adentro. Boca larga... Me vem um pensamento de relance. Maria Bethânia. "Hoje eu ouço as canções que você fez pra mim". "Preciso acabar logo com isso, preciso lembrar que eu existo". Maldito Roberto Carlos, maldita Maria Bethânia, maldito som ultrapassado chiando. Eu canto, dona indevida da letra e melodia apropriadas por mim com a raiva de odiar a verdade reproduzida. Bebo mais um gole de vinho. Eu canto e soluço. Poderia ser um efeito de produção. Acho graça soluçar chorando. Gargalho doentemente. Gargalho e chio, competindo com esse som miserável. Preciso trocar o som, comprar algum outro que preste. Lembro das taças. Economias precisam ser feitas. Fica o som, fica o chiado. Rio, possuída de uma violência de quem vomita. O chiado até parece efeito dramático. Onde caberia uma pausa dramática nesse mundo em rodopios? E o mundo gira, a sala gira, o vinho gira. E o chão girando agora me põe na dança. Eu danço, danço feito uma folha tomada pela mão do vento, dona de todo o céu. A vida às vezes é mesmo uns giros sem sentido. O prazer das entregas. Igual foder por pura liberalidade num encontro fortuito com um cara desconhecido, até o final desconhecido, eternamente sem nome, mas memorável para todo o sempre. E eu giro, sem sair do lugar, giro, rodo meu peito inteiro, meus cabelos flutuam, meus pensamentos me dão uma paz momentânea, sobem até o teto com o som e ali brincam de roda. Me abandonam e eu sou livre. Queria muitas vezes ser órfã de alguns pensamentos. E eles, volteando numa brincadeira - observo dançando do chão giratório - agora cantam. "Fera ferida, no corpo, na alma e no coração". E eu fico puta. Tudo despenca lá de cima. Se precipitam diretamente sobre meus olhos. Despencam eles. Despenco eu. Uma taça a menos e alguns goles desperdiçados. Preciso pensar nas coisas práticas, amanhã. Amanhã. Economias são necessárias. "Você vai se lembrar de mim". E eu mando o som calar a boca enquanto me agarro à garrafa de vinho. Grandissíssima merda. Merdíssima. Superlativos são débeis. Ódio de superlativos. Quem inventou superlativos? Quem criou a ideia da suficiência de uma palavra potencializada nunca sentiu dores de vazante. Minha alma exige dicionário inteiro de palavrões. Acabou o papel higiênico. Meus olhos doem, meu nariz arde. Pego uma camisa dele. Nunca um armário esteve tão longe de mim. Escarro o abandono, a mágoa. Até Maria Bethânia e Roberto Carlos estão rindo, posso ouvir. Foi uma fortuninha essa camisa. Lenço de pano com mangas. E babo, salivo, escarro, choro, sangro. Machuco a camisa e a camisa me machuca. Camisas de seda são outra merda pra quem está com congestão nasal. E volto para a garrafa. Por que me deixou só? Não me deixa só. Aliás, só não me deixa. Delírio. Vem cá, me abraça. O prazer de abraçar uma garrafa. Chia, insistente, o bendito som. Vontade de deslizar pela parede. Deslizo. Bebo mais uns goles de vinho. Vários sentidos sentidos. Meu rosto quente, olhos doendo, a garganta gritando, meu diafrágma em pulos, eu toda lambuzada de mim. Na parede encostada me ajeito sentada com as pernas naturalmente abertas. Quase exaustão. Passo a mão no meu rosto úmido, escorrego pelo meu corpo, meu peito, chego em minhas coxas. Quente. Quente. Jogo vinho em mim. Uma cascatinha violácea. Engasgo, rio mais, choro. E minha mão livre se apossando de mim numa tentativa inútil, eu na esquina de um desmaio. O chiado vai continuar até amanhecer, as músicas vão se repetir até amanhecer. "Desisti de tentar te esquecer, resolvi te querer por querer..." E eu resistindo, inutilmente resistindo, já meio dormente numa poça de vinho, fluidos e mágoas. O chiado vai continuar até amanhecer, as músicas vão se repetir até amanhecer, eu vou sofrer pra além do amanhecer... Amanhã, preciso tomar medidas práticas... "Amanhã de manhã vou pedir um café pra nós dois..." Merda.
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EMPLASTRO
Não, moço. Quero não. E não carece, esses dedos todos... Deixa, que eu vejo daqui de dentro as nuvens, e você me insiste que faz sol, é maio e o céu é azul. Deixa, moço. Tristeza é natural. Tem dia o riso se aparta da gente. A gente de um lado fica - o riso? Nem se tem ideia. Ri em algum canto onde pode se rir. Mas não é caso não. Deixa a graça pra seu canto, e deixa eu cá moer tristeza. Só assim a dor passa.
Dor é feito bicho, sabe? Depois de nascida tem é de cumprir o ciclo, e é dentro, só serve dentro da gente. Se eu negar, moço, a dor depois volta e revolta bicho maior, mais brabo, mais daninho. E fica nisso de a gente afugentar a dita e a danada voltar, e vir mordiscando a gente, fazendo buraco, fundo, fundo, até nosso próprio peito se afundar e ela reinar sozinha, vitoriosa. E tudo isso porque na hora de deixar ela crescer e morrer faltou coragem. É de covardia que se morre nos finais e se mente. Tristeza, moço, a gente atravessa de olhos abertos, senão vira ilusão, delírio, e no fim se endoidece.
Não, moço. Quero não. Deixa eu sofrer pra sarar minha tristeza.
Sobre a autora
Mariana Branco. Mulher, apaixonada pelas palavras, tanto, que não desiste de escrever.
[Quatro linhas é demais pra mim. Falta currículo. Tudo mais me pareceu dispensável, co-mo dizer que tenho mais de 30 (33), sou oficial de justiça, formei em Direito, continuo meus estudos em Constitucional, tenho uma gata, cuido da minha avó. Toco, danço e faço teatro. Amo e me atrapalho constantemente... Não sei. Acho que a frase solitária e mais breve acima basta.]
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